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Crítica | O Dia em que Selma Sonhou com um Ocapi, de Mariana Leky

por Luiz Santiago
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Vocês se comportam como crianças que acreditam que ninguém as vê quando elas fecham os olhos.

Westerwald, ou Floresta Ocidental, é uma região de cadeia montanhosa e de província vulcânica localizada no oeste da Alemanha. Este é o lugar onde reside Selma, o oculista, Elsbeth, a triste Marlies e mais uma dezena de personagens fascinantes que povoam este romance de de Mariana LekyO Dia em que Selma Sonhou com um Ocapi, originalmente publicado em julho de 2017. A obra é um drama cômico, de certo caráter confessional e influenciada pelo realismo mágico, contando-nos os pormenores em torno daquilo que o título diz, com o seguinte (e amedrontador) fato a considerar: toda vez em que Selma sonha com um ocapi, alguém morre.

O fio condutor da obra é a narração de Luise, neta de Selma, que encontramos inicialmente aos 10 anos de idade e a quem vemos crescer, aprendendo as muitas lições ensinadas pelo oculista e fazendo a vida mais feliz para Selma e para Martin, melhor amigo de Luise. Trata-se de uma história cheia de vida e narrada com uma fluidez tão grande, que temos aquela gostosa experiência de não querer mais largar o livro, tal é a curiosidade que a vida dessas pessoas desperta em nós e tal é a habilidade de Mariana Leky em transformar as coisas mais banais da vida — ou do cotidiano de uma pequena cidade do interior –, em um caminho para a reflexão sobre o que é viver, sobre a doçura, as aventuras, a crueldade e as surpresas da vida.

A forma de exposição dos dias e dos eventos de Westerwald lembra os de uma peça ou de uma radionovela. O texto nos dá rápidos momentos de descrição do espaço, que a cada novo capítulo ganha uma novidade, uma cor, um objeto, uma visita diferente. A nossa experiência de leitura é de uma grande proximidade com os personagens, pois fazemos descobertas tendo um olhar inocente e maravilhado a nos conduzir (Luise), mas ao mesmo tempo somos colocados como alguém que já conhece tudo aquilo, como se fôssemos um dos habitantes mais velhos da pequena cidade vendo os dias se passarem, as boas e más notícias se sucederem, as pessoas envelhecerem e, em certo momento, morrerem.

Divido em três partes, o livro segmenta com sucesso o avanço da idade de todos, que estão diante de algumas novidades tecnológicas (ou mudanças urbanas, embora poucas) e jamais perde a capacidade de nos impressionar. Quando “tudo” na cidade já havia sido devidamente abordado, a autor nos apresenta a visita de alguns monges, que parecem “sair do nada, da floresta” e no meio deles está Frederik, que terá um papel bem importante no restante da trama. Então passamos a conhecer os conflitos íntimos, as tristezas que moram atrás de cada porta, as vozes cruéis na cabeça de uma pessoa e o medo constante de todos com a possibilidade de Selma sonhar com um ocapi.

Os personagens aqui são muitíssimo bem delineados, com características que mesmo em sua evolução, no passar dos anos, faz-nos reconhecer a mesma pessoa. E isso é extremamente importante para uma obra quase claustrofóbica como esta: colocar-nos em contato com cada um a ponto de percebemos o que mudou em todos eles, do início ao fim do romance.

A partir do capítulo Bioluminescência, no final da Parte 2, o leitor começa a sentir o uma guinada no tom geral, onde os sentimentos até então colocados como “mais um” ingrediente local passam à dianteira e definem aquilo que todos nós temos a partir de determinado ponto da vida: a sensação de finitude, a preocupação ou investigação de um legado, a partida de pessoas que amamos e a valorização de coisas que antes eram apenas “coisas“, aquilo que a correria de todos os dias não nos permitia ver de verdade. E em toda a 3ª Parte, Leky faz questão de demarcar a passagem do tempo como uma sequência de experiências mecânicas que todos nós temos em nossa rotina. A cada ciclo, vemos rapidamente novidades sobre os personagens de uma novela, sobre as idiossincrasias de um habitante da cidade, sobre alguma permanência esperada ou inesperada. Nossa visão e os próprios personagens estão maduros nesse final, e justamente por isso é que esta última parte do livro prende por completo.

Eu comecei a lacrimejar a partir do capítulo Espantar o Cervo e a cada grupo de páginas viradas, pelos sete capítulos seguintes, me vi chorando de verdade por diferentes acontecimentos. Mais uma vez, o realismo e o tom fantasioso que permearam toda a história se unem ao nosso sentimento junto aos personagens e à projeção que fazemos de nós nessas cenas, tornando tudo muito intenso, fazendo-nos chorar e ao mesmo tempo querer celebrar a nossa vida e a vida daqueles a quem amamos. O Epílogo, infelizmente, não me agradou muito, me pareceu reticente demais em comparação ao encorpado drama que tivemos antes, mas ainda assim, trata-se de um ótimo final. O curso da vida que a gente sabe que ficará aqui, mesmo que não estejamos desse lado do Bosque das Corujas para observá-lo florescer e nutrir as novas gerações.

O Dia em que Selma Sonhou com um Ocapi (Was man von hier aus sehen kann) — Alemanha, julho de 2017
Autora: Mariana Leky
Editora original: DuMont
Edição lida para esta crítica: Editora Planeta do Brasil e *TAG (Edição Especial), 2019
Tradução: Claudia Abeling
320 páginas

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