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Crítica | O Dia do Chacal – 1ª Temporada

Os vários dias do Chacal.

por Ritter Fan
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Em sua essência, o romance O Dia do Chacal, primeira obra de ficção do autor britânico Frederick Forsyth, é um meticuloso manual de como planejar e executar um assassinato de uma figura pública e de como caçar o assassino. Forsyth vitoriosamente desafiou convenções literárias ao não oferecer mais informações sobre seus protagonistas – o Chacal e o Comissário Lebel – do que as estritamente necessárias para sua obra de contornos quase jornalísticos e, mesmo assim, criou um thriller espetacular por justamente ser fora do comum. O longa-metragem de 1973, dirigido por Fred Zinnemann, tentou permanecer o mais próximo possível do material base e, justamente por essa razão, obteve resultados menos do que perfeitos, mas ainda muito bons.

Curiosamente, entre 1973 e 2024, o romance só ganhou uma outra tentativa de adaptação no ocidente (faço essa diferenciação, pois houve uma versão indiana em 1988), o filme O Chacal, de 1997, que não é nem exatamente possível considerar como uma real adaptação, mas algo apenas muito de longe inspirado na obra de Forsyth e que, vale lembrar, a produção não teve autorização para adaptar. Agora, no afã de se produzir séries para serviços de streaming, a Sky e a Peacock se juntaram para colocar nas telinhas uma versão serializada do romance, só que passada nos dias atuais, com 10 episódios de duração, uma escolha sem dúvida interessante, mas que traz problemas inerentes ao formato.

Mas, antes de entrar em detalhes positivos e negativos sobre a série já renovada para uma segunda temporada, tenho que reconhecer o admirável trabalho do showrunner irlandês Ronan Bennett em verdadeiramente adaptar o romance original, não só trazendo-o para os dias de hoje em que a alta tecnologia está presente em todos os lugares, como também cuidando para que a estrutura da temporada siga, com surpreendente fidelidade, o material original. Aos que tiverem lido o livro e/ou assistido o filme de 1973 e estranharem essa minha afirmação, pensem com distanciamento e percebam como quase tudo que está presente no romance ou longa setentistas é, de uma forma ou de outra, usado na adaptação, de o assassinato principal ser planejado como a última missão do Chacal, o uso de nomes relevantes e sequências icônicas, passando por figurinos e personagens como o armeiro do assassino, a existência de um traidor na organização que o caça, as conexões que o Chacal faz durante a execução de seu plano e assim por diante. Claro que tudo ganha um novo verniz e mais detalhamento, mas o livro está quase todo contido na série e Bennett merece aplausos por esse cuidado e, diria, carinho pelos trabalhos de Forsyth e de Zinnemman.

A mais relevante diferença entre a série e as obras que a originaram é a inserção de famílias tanto para o assassino de aluguel conhecido apenas por seu codinome Chacal (Eddie Redmayne) quanto para Bianca (Lashana Lynch), a agente do MI-6 que se interessa por ele quando ouve falar de um assassinato ocorrido em Munique em que o assassino matou sua vítima com apenas um tiro disparado a quase quatro quilômetros de distância e através de uma porta giratória de vidro, sequência que serve de abertura para a série e que já estabelece muito claramente as habilidades e personalidades dos dois personagens principais, um meticuloso ao extremo, a outra dada à arroubos obsessivos. Esses laços familiares emprestam humanidade à caça e caçadora, algo inexiste tanto no livro quanto no filme, e criam boa parte dos aspectos dramáticos que permitem que a narrativa seja expandida para o tamanho desejado (pela produção, claro) de quase 10 horas e, ao mesmo tempo, começam a mostrar uma certa artificialidade na história e um constante vai-e-vem, ficando muito evidente ao espectador, lá pelo terceiro ou quarto episódio, que muito do que a temporada oferece é “enchimento” entre atentados.

Na história, depois de assassinar um político alemão da extrema direita da forma que descrevi acima, o Chacal é contactado por uma mulher que representa interesses escusos de gente muito poderosa para ele assassinar, em pouco tempo, o bilionário Ulle Dag Charles (Khalid Abdalla), conhecido pela sigla UDC, que planeja, em alguns dias, lançar um produto digital batizado de River que tem como objetivo tornar transparentes todas as operações financeiras de bilionários como ele. Cobrando a cifra astronômica de 100 milhões de dólares e imaginando que, depois, ele se aposentará para viver com sua esposa espanhola Nuria (Úrsula Corberó) e seu filho pequeno Carlitos, o Chacal parte em uma corrida contra o tempo para não só bolar um plano, como, também, conseguir todo o material necessário para executá-lo, especialmente uma arma fabricada exclusivamente para ele, segundo suas especificações, por Norman Stoke (Richard Dormer), um armeiro irlandês foragido na Bielorrússia. Do lado de Bianca, ela começa a colocar em funcionamento sua rede de contatos para justamente descobrir quem pode ser o armeiro do Chacal, revelando-se como uma agente com coração mais frio do que o do próprio James Bond.

Falando em 007, desde a abertura, passando pelas filmagens em locação em diversos países europeus e todo um ar de sofisticação, percebe-se que, atmosfericamente, o que Bennett procurou criar foi uma mescla entre o romance de Forsyth e os filmes do agente britânico com permissão para matar. Podemos ver nessa versão do Chacal e também em Bianca elementos de algumas encarnações de James Bond ao longo das décadas, em uma fusão interessante, mas que contribui, por diversas vezes, para afastar a narrativa de seus aspectos centrais, sempre na tentativa de jogar uma  espécie de puçá narrativo para pegar a maior quantidade de peixes possível. E, como disse, vários desses peixes nadam nas lagoas das relações familiares do Chacal e de Bianca, o primeiro tendo que lidar com uma esposa, cunhado e sogra enxeridos e a segunda precisando mostrar ao marido e à filha que ela também pensa neles, mesmo estando ausente o tempo todo para fazer o que realmente gosta. São momentos sem dúvida menos inspirados, por serem bastante lugar-comum, caminhando pela linha do clichê básico de obras do gênero.

Mas, no geral, a estrutura de gato correndo atrás do rato enquanto o rato tem seus próprios e complexos planos, sem contar com engrenagens sinistras girando no pano de fundo, funciona bem e faz com que os “enchimentos” que mencionei sejam de qualidade suficiente para os aceitarmos. Sim, fica evidente que eles estão presentes o tempo todo, mas eles tendem, com maior ou menor grau, a ser suficientemente bem costurados a uma narrativa que precisa ser estendida ao máximo para funcionar de verdade, criando sidequests tensos e bem coreografados. Tanto Redmayne quanto Lynch demoraram, pelo menos para mim, para me convencerem como seus respectivos personagens (e não digo isso em comparação ao livro ou ao filme, mas sim restrito à proposta da série), mas, com o tempo, eles conseguiram vestir suas respectivas personalidades, ainda que nenhum dos dois tenha conseguido, ao meu ver, criar algum tipo de empatia.

Desgosto de verdade, porém, da velha estratégia de encerrar a história no penúltimo episódio para que o último, então, seja utilizado como a construção da infraestrutura da segunda temporada. Onde está a arte de se encerrar completamente uma história, deixando apenas uma fresta para que ela continue? Tudo agora precisa mesmo ser escancarado e terminar sem resolução (ok, há UMA resolução completa que até achei inesperada e gostei bastante) para que, então, seja possível continuar? Usar mais de uma hora para criar as supostas condições de um segundo ano é subestimar demais a inteligência do espectador, como se fosse necessário – e vou usar metáfora pisciana novamente – deixar uma isca apetitosa para que o público volte para mordê-la. Claro que eu preferida que não houvesse continuação alguma, mas, se é para ela existir, que tal então deixá-la nas entrelinhas?

Bem, seja como for, O Dia do Chacal é um convidativo e elegante thriller que acerta mais do que erra e entrega uma adaptação moderna e estilosa de romance e filme clássicos que realmente merecem ser mais aproveitados em nosso mundo moderno em que todas as propriedades intelectuais são recicladas com constância. Afinal, melhor reciclar obras de qualidade do que as várias porcarias que vemos por aí. Eu só espero que a segunda temporada da série – que sim, tem potencial para ser também interessante e ainda mais “jamesbondiana” -, mantenha a qualidade, ainda que seja de bom tom repensar em seu tamanho, talvez usando a quantidade usual de episódios de séries britânicas, ou seja, não mais do que seis.

O Dia do Chacal – 1ª Temporada (The Day of the Jackal – Reino Unido, de 14 de novembro a 13 de dezembro de 2024)
Desenvolvimento: Ronan Bennett (baseado em romance de Frederick Forsyth)
Direção: Brian Kirk, Anthony Philipson, Paul Wilmshurst, Anu Menon
Roteiro: Ronan Bennett, Jessica Sinyard, Charles Cumming, Shyam Popat
Elenco: Eddie Redmayne, Lashana Lynch, Úrsula Corberó, Chukwudi Iwuji, Khalid Abdalla, Lia Williams, Eleanor Matsuura, Sule Rimi, Ben Hall, Jonjo O’Neill, Charles Dance, Nick Blood, Richard Dormer, Adam James, Gerard Kearns, Florisa Kamara, Kate Dickie, Puchi Lagarde, Jon Arias, Patrick O’Kane, Christy Meyer
Duração: 513 min. (10 episódios)

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