Uma das coisas que eu mais gosto em ficções históricas é a capacidade de os autores pegarem eventos esquecidos e até mesmo vistos como “lenda” ou “fantasia” e usá-los a favor da aventura que estão criando. É exatamente o que faz o gaúcho Samir Machado de Machado em seu livro O Crime do Bom Nazista (2023), ambientado em terras brasileiras, em outubro de 1933, por ocasião da passagem do Graf Zeppelin LZ 127, pelo Campo do Jiquiá, em Recife, até o seu destino, na então capital do país, a cidade do Rio de Janeiro. Para leitores menos ligados à História, um relato sobre zeppelins sobrevoando os céus brasileiros e transportando passageiros e correspondências parece especulação com sabor steampunk. Mas não é. Não só o dirigível citado, como a empresa Luftschiffbau Zeppelin, o comandante Hugo Eckener e seu filho Knut são reais, e aparecem bem utilizados nessa trama policial que costura a violência e a segregação da Alemanha do Terceiro Reich com as da ascensão da extrema-direita no Brasil, especialmente a partir de 2018.
Narrativas desse tipo nos incomodam bastante durante a leitura porque nos desafiam e nos jogam na cara situações que, em nossa vivência, já foram banalizadas e, de alguma forma, parecem “normais”. É o tipo de livro que faz o leitor enxergar padrões comportamentais e ideológicos em cenários distintos, potencializando a denúncia, a crítica, o grito que esse tipo de enredo traz, especialmente quando alude a situações políticas, centralização autoritária de poder e perseguição oficial, mortal e crescente a grupos minoritários, opositores, ou que simplesmente não se encaixam no estrito modelo proposto pelo “verdadeiro regime“. Em 2021, eu senti isso na leitura de O Pato – Uma Distopia à Brasileira, de Gabriel Fabri; em 2022, na leitura de Operação Brasil: A História Como Você Nunca Viu, de Dan Oliver; e em 2023, com O Crime do Bom Nazista. Já se vê um interessante caminho aí. A arte, como sempre, faz a sua leitura imediata da realidade, e escancara a podridão daquilo que a alienação e os problemas recorrentes da vida tendem a diluir e fazer parecer que “é natural“.
O título do livro já deixa o leitor com o sinal de atenção ligado, e a apresentação do policial criminal nazista Bruno Brückner, passageiro do Graf Zeppelin LZ 127, coroa essa sensação de ódio. Depois de terminado o livro, a gente ri um pouco, lembrando do desfecho e de como o autor foi reforçando a ira do leitor a partir da presença de indivíduos como o infame médico sanitarista Karl Kass Vögler; o comerciante de café Otto Klein; o crítico de arte William May, e a baronesa Fridegunde von Hatten. Como o desenvolvimento do livro é focado na ampliação de características e psicologia dos personagens — em oposição ao início e ao desfecho do volume, que exploram mais os cenários e trazem discussões de ideias e leituras históricas –, o público passa a conhecer mais intimamente cada uma dessas pessoas, e a fazer a sua própria lista de suspeitos, assim que o corpo de um dos passageiros é encontrado no banheiro.
Todavia, a investigação do crime e a busca detalhada por pistas não é o foco de Samir Machado neste livro. Ele ronda um pouco algumas publicações de mistério ou espionagem populares nos anos 30 (chega a citar Erskine Childers e Os 39 Degraus, por exemplo), e até toma a liberdade de deslocar Assassinato no Expresso do Oriente para publicação em 1933, em vez de 1934 (aliás, achei ótima a forma “codificada” de aparição desse livro, com a tradução alemã de Elisabeth van Bebber, para a Goldmann Verlag Leipzig: Die Frau im Kimono), brincando com o gênero e estendendo o manto de mistério politizado que, de fato, é o cerne da obra. Além disso, o fato de estamos num meio de transporte e termos um grupo heterogêneo de personagens flerta com a obra de Agatha Christie, de modo que a referência feita pelo autor não é, em nada, vazia. No meio dessa atmosfera de frequente desconfiança, vemos aparecer justificativas para a forma de pensar e agir dos personagens, bem como os motivos que supostamente os tenham impulsionado a cometer o crime.
Do momento em que o zeppelin sai de Pernambuco até o final das as investigações, a narrativa de Machado vai pouco a pouco incorporando reflexões que mostram como a História do Brasil esteve ligada à extrema-direita nazista, e isso aparece factualmente no enredo pela presença do Aurora Alemã (Deutscher Morgen), semanário do Partido Nazista publicado em São Paulo, pela embaixada — e para quem não sabe, o tal jornal foi editado de 1932 a 1941, e tinha sua redação no bairro da Mooca –; e pela presença do Congresso Brasileiro de Eugenia e também da Sociedade Eugenista de São Paulo, onde Vögler palestraria sobre “os danos da mestiçagem às nações“. Essas pontas históricas bem amarradas no livro deixam o contexto mais amargo, criando uma trilha de horrores sociais e ideológicos que veríamos retornar ao país, deixando uma trilha de mortos toda vez que se renova e chega ao poder. É verdade que essa linha de abordagem fica cansativa, no decorrer do volume, mas o motivo do por quê o autor a escolheu é compreensível.
O derradeiro capítulo de O Crime do Bom Nazista possui uma cadência narrativa estupenda. Ele traz a resolução do caso e cimenta o drama através de um flashback de conteúdo pesado, assustador e enraivecedor. No processo, consegui descobrir a surpresa escondida, mas isso não diminuiu o poder que ela teve para mim. A princípio anticlimática, a resolução do caso acaba ganhando um adendo que muda a nossa opinião sobre a trajetória investigativa e sobre o veredito do policial criminal, que parece estranho, injusto e insatisfatório.
Todo mundo que já foi ou sentiu-se indiretamente ameaçado por algum grupo violento, mesmo não fazendo parte daqueles abertamente perseguidos, encontrará neste livro o deslocamento de seu sentimento e sofrimento para os anos 1930, a bordo de um zeppelin, num processo de investigação de um assassinato. É uma das ficções históricas brasileiras mais marcantes dos últimos anos, um livro-espelho da nossa realidade recente, que conclama ao necessário e legítimo ódio aos nazistas; ao abraço àqueles que sofrem; à valorização das artes, da ciência, e ao segurar a mão dos segregados. O sofrimento, aqui, dá lugar à esperança para aqueles que são Diferentes dos Outros. Não uma esperança de quietude bovina, apolítica. Em vez disso, uma realidade que age diante das injustiças, organiza-se politicamente, vive a sua própria verdade e é feliz. Porque não há nada que irrite mais a escória nazifascista do que pessoas vivendo fora dos dogmas desumanos que eles criaram, pisoteando falsas religiões e sentindo prazer naquilo que lhes dá prazer. Sim. É isso que seguiremos fazendo.
O Crime do Bom Nazista (Brasil, 9 de março de 2023)
Autor: Samir Machado de Machado
Publicação: Editora Todavia
Capa: Giovanna Cianelli
135 páginas