O mito dos pés grandes – ou sasquatches – está embrenhado no folclore da América do Norte (EUA e Canadá) desde pelo menos meados do século XX, com um sem número de supostas aparições, fotografias e até filmes “verdadeiros” alimentando narrativas fantasiosas de todo o tipo na região chamada comumente de Noroeste Pacífico dos dois países, tendo também ganhado diversas versões ficcionais em séries e filmes. O Crepúsculo do Pé Grande bebe generosamente dessas fontes, claro, mas a intenção dos irmãos David e Nathan Zellner (Kumiko, a Caçadora de Tesouros) não é de forma alguma colocar mais lenha nesse fogo, mesmo que a abordagem seja naturalista, quase como um documentário da National Geographic, mas sim apresentar uma visão melancólica e inegavelmente pessimista da “invasão” humana na Natureza.
Durante quase a metade do longa, observamos um clã composto por quatro pés grandes, um macho alfa (o co-diretor Nathan Zellner), um macho “submisso” (Jesse Eisenberg), uma fêmea (Riley Keough) e um jovem macho (Christophe Zajac-Denek) simplesmente vivendo seu dia-a-dia nas florestas verdejantes. Eles comem, transam, brigam, fazem suas necessidades e, de tempos em tempos, cerimonialmente batem nas árvores com toras provavelmente na esperança de encontrar outros de sua espécie, mas sem sucesso, o que, somado ao título, dá a entender que eles são os últimos de uma espécie em extinção. A história ou, melhor, a observação dos hábitos das criaturas – trata-se de um filme não verbal, logicamente, mas ele não segue uma narrativa clássica como, por exemplo, A Guerra do Fogo – é divida pelas estações e o que vemos poderia estar ocorrendo até mesmo na pré-história dada a completa ausência de outros elementos que batam o martelo sobre o período exato dos eventos.
Mas isso acaba quando os pés grandes veem um X pintado com spray no tronco de uma das gigantescas árvores, um momento que eleva a curiosidade deles e que lembra a chegada do monólito no deserto em 2001 – Uma Odisseia no Espaço, só que com objetivo contrário: a marca vermelha não significa evolução, mas sim o apressamento do fim para os últimos pés grandes, com a chegada do Homem e sua necessidade de domar, dobrar e destruir a natureza para trazer “progresso”. A partir dessa virada, que obviamente situa a ação no presente (ou em algum momento das últimas décadas, pouco importa), o grupo encontra com cada vez mais constância a presença humana em seu habitat, mas sem que humanos sejam vistos: uma estrada asfaltada corta a floresta, um acampamento vazio é achado, um tronco boiando no rio é localizado, um incêndio é visto ao longe. Como são criaturas humanoides, percebe-se muito claramente o aumento da ansiedade deles, das dúvidas, sem que eles tenham a mínima ideia do que está acontecendo e o espectador passa a ver a presença humana pelos olhos daqueles que sofrem diretamente em razão dela.
Mesmo com a tecnologia de captura de performance estando amplamente disponível – ainda que não, provavelmente em razão do valor, para uma produção independente como essa – é um alívio ver o emprego das boas e velhas próteses físicas em todo o filme. O trabalho de criação das “roupas de pé grande” por Steve Newburn merece aplausos pelo detalhismo, pela forma como cada personagem tem suas características e como as máscaras deixam todo o espaço do mundo para que as mais detalhadas expressões sejam trabalhadas pelos atores, mesmo quando as câmeras estão bem próximas de seus rostos e mesmo considerando que as feições originais deles desaparecem por completo debaixo das próteses (não há créditos no início, pelo que eu só fui saber que era o Eisenberg como um dos personagens – esse da foto que ilustra a presente crítica – depois que o filme acabou).
Outros que merecem aplausos, claro, são os atores por se sujeitarem a todo o processo de “vestir” as próteses que os fazem desaparecer por completo e de investir uma quantidade enorme de tempo no treinamento para “se tornarem” as criaturas, algo que foi comandado por Lorin Eric Salm, com quem Eisenberg trabalhara em Resistência (2020), filme em que ele viveu o mímico Marcel Marceau, tudo isso para um filme que, muito provavelmente, será assistido por um público minúsculo, ainda que eu espere que ele tenha milagrosamente um alcance maior. Nada como realmente investir em sua arte, não é mesmo?
Confesso, porém, que não sou muito fã das várias oportunidades que os Zellners usam para lidar explicitamente com escatologia. Eu sei que a pegada é como se fosse um documentário, mas mesmo documentários reais sobre a natureza costumam encontrar equilíbrio e lidam com fluidos e sólidos corporais de maneira comedida, na real medida do necessário. Mas a dupla de diretores, muito ao contrário, não faz de rogado e trata de mostrar vômitos, defecações, urina e outras coisas agradáveis assim com uma constância muito maior do que o filme realmente pede, por vezes descambando por uma comicidade de 5ª série que quebra completamente o tom da produção. Não há necessidade de chocar dessa maneira nesse longa, pois o choque se dá pela invasão humana, pelos eventos que gravitam ao redor dos quatro personagens, com o “cocô e xixi” não passando de bônus de gosto duvidoso – ok, duvidoso nada, é nojento mesmo – que poderia ter sido evitado nessa intensidade.
Mas necessidades fisiológicas à parte, O Crepúsculo do Pé Grande, com todo o seu silêncio pontuado pela bonita trilha sonora composta pelo grupo musical The Octopus Project, faz sua abordagem ecológica funcionar muito bem, chamando a atenção para os paraísos que nós fazemos questão de macular e obliterar, cobrando um preço terrível do planeta que, obviamente, nos afeta diariamente mesmo que alguns teimem em dizer que não. Infelizmente, podemos nos ver nos pés grandes, mas como vítimas de nossa própria espécie e a pergunta que fica é: até que ponto insistiremos em apressar o nosso próprio fim?
O Crepúsculo do Pé Grande (Sasquatch Sunset – EUA, 2024)
Direção: David Zellner, Nathan Zellner
Roteiro: David Zellner
Elenco: Jesse Eisenberg, Riley Keough, Christophe Zajac-Denek, Nathan Zellner
Duração: 88 min.