Sempre tive uma admiração muito grande pelo cineasta alemão Werner Herzog, uma admiração que, porém, ia além de sua filmografia e chegava a um nível tão alto que eu nunca soube realmente explicar a razão. Acho que encontrei a resposta para esse mistério no breve prefácio dele em seu livro O Crepúsculo do Mundo, sua primeira obra literária de ficção. No texto, ele explica que estava no Japão para dirigir a ópera Chushingura quando lhe foi oferecida a oportunidade de ter uma audiência privada com o Imperador Akihito. De reflexo, ele negou dizendo que seria algo apenas formal, sem grande valor pessoal para ele, mas automaticamente percebeu o tamanho da gafe que cometera. Mas, ela já fora cometida e não havia volta. Alternativamente, mesmo assim, foi-lhe oferecida a oportunidade de se reunir com qualquer outra pessoa do Japão que lhe interessasse e ele imediatamente escolheu Hiroo Onoda, que acabou sendo o foco do livro sob análise.
Mas, antes de eu chegar ao livro em si, deixe-me apenas concluir meu ponto sobre Herzog a partir do que relatei acima: minha admiração por ele não vem apenas de seus vários magníficos filmes e documentários, mas sim por ele ter a versatilidade de dirigir uma ópera no Japão, ter a honestidade de negar um encontro com o Imperador, mesmo reconhecendo seu erro formal e, no lugar, pedindo para conhecer Onoda, tecnicamente a penúltima pessoa a render-se depois do fim da Segunda Guerra Mundial, ainda que ele seja de longe o mais famoso, tendo inclusive morado no Brasil durante um bom tempo após seu retorno de seu posto na ilha de Lubang, nas Filipinas, onde ficou de 1944 a agosto de 1974 (sim, 30 anos!). Como não tirar o chapéu para Herzog, não é mesmo?
Em seu curtíssimo livro – diria que curto até demais – Herzog relata com brevidade, economia e uma dose de lirismo a permanência de Onoda na ilha, no exato mesmo posto que foi ordenado a ficar até que as forças imperiais japoneses retornassem. O livro é escrito com o artifício do enquadramento, começando pelo localização do soldado japonês pelo jovem compatriota Norio Suzuki que largou a faculdade e resolveu viajar pelo mundo com três objetivos: encontrar Onoda, ver um panda em seu habitat natural e achar o Abominável Homem das Neves. Não era segredo algum na ilha que havia ainda pelo menos um soldado japonês por ali, pelo que Suzuki não teve um trabalho muito grande para cumprir sua primeira missão. Quando Onoda estabelece como condição para sua rendição que seu superior venha pessoalmente lhe passar essas ordens e Suzuki, então, precisa retornar ao Japão para isso, a história então começa a partir do momento em que Onoda recebe ordens explícitas e inequívocas de defender a ilha contra as forças inimigas custe o que custar, usando todos os seus conhecimentos de guerra de guerrilha, sua especialidade e a razão de ele ser escolhido para a missão.
Diferente do que muitos podem imaginar, Onoda não passou as três décadas seguintes sozinho, pois ele teve, durante um bom tempo, a companhia de três outros soldados japoneses que encontrou em situações diversas e que passaram a vê-lo como seu comandante direto. Também diferente da percepção de muitos, Onoda não se afastou do mundo ao ponto de sequer saber o tempo que passou. Muito ao contrário, ele não só mantinha um calendário que, com apenas pequenos erros, acompanhava cada dia de cada ano de seu isolamento na selva, como ele se mantinha atualizado com informações que ouvia ou lia a partir do que obtinha (leia-se: furtava) dos vilarejos locais e da movimentação aérea por sobre sua cabeça representando seja a Guerra da Coréia, seja a Guerra do Vietnã, inclusive sendo astuto o suficiente para notar a evolução meteórica das aeronaves e verbalizando o desejo expresso de estudar os novos motores a jato. Ele apenas tinha uma interpretação diferente do que estava ocorrendo, interpretação essa decorrente de sua lealdade ao Japão e certeza de que seu país caminhava para a vitória na guerra: tudo aquilo eram movimentações geopolíticas de um cenário de guerra em constante mudança, mas com o Japão ainda à frente pelo menos no Oceano Pacífico.
E não, Hiroo Onoda não era “maluco” ou obcecado ou mesmo um nacionalista exacerbado. Esse reducionismo é um desserviço à memória de alguém que passou 30 anos na selva quase que completamente sozinho, sem suprimentos, tendo que se manter em constante movimentação ao longo dos anos por ser normalmente caçado pelo exército local, tendo sofrido diversos atentados (não que ele mesmo não tenha cometido atentados, mas, sob seu ponto de vista, a guerra ainda estava em andamento, lembrem-se!). Onoda era um homem com um profundo senso de dever e, mais importante do que isso, uma profunda capacidade de cumprir esse impossível dever, pois não é qualquer pessoa que é capaz de fazer o que ele fez por tanto tempo (e, só de curiosidade, ele só viria a falecer em 16 de janeiro de 2014, aos 91 anos, um feito impressionante por si só).
O que Herzog faz, com maestria, é destilar a essência de 30 anos de dedicação absoluta à defesa de uma ilha e à sobrevivência no que é, no frigir dos ovos, um punhado de páginas. A mera capacidade do autor em comprimir os principais eventos ao redor de Onoda, incluindo a importância que ele dava à conservação da espada samurai ancestral de sua família (ele teve que aprender a fazer óleo de palma para manter a corrosão longe do metal), é de dar inveja a qualquer um. Como eu disse mais acima, eu até teria preferido que Herzog tivesse ido além e escrito um livro mais longo, mas a grande verdade é que ele escreveu o que tinha que escrever, entregando um obra que devidamente reverencia Onoda, mas sem colocá-lo em um pedestal intocável e que nos faz muitas perguntas pela forma quase poética como o autor lida com a passagem de tempo, a conexão de Onoda com seus compatriotas, sua localização por Suzuki e sua emocionante rendição, que dá fim ao que talvez possamos, de maneira rasa, chamar de um profundo desperdício de 30 anos, mas que deveria nos fazer parar e olhar para nossas próprias vidas cercadas de materialismo e de desejos inalcançáveis que levam a frustrações e a espirais psicológicas do tipo. Onoda viveu sua vida de seu jeito e, se formos além do livro e pesquisarmos o que ele fez depois que retornou a seu país, notaremos que ele fez excelente uso de seu isolamento quase inacreditável.
Um grande mestre do Cinema entrega uma curta, mas belíssima obra literária que aborda a vida de um dos homens mais impressionantes do século XX. Exagero? Quando você estiver cansado depois de fazer uma trilha demarcada de dois quilômetros com todo o aparato da modernidade, ou retornando para casa em um ônibus ou metrô com assento acolchoado, pense no que Onoda fez ao longo de quase 11 mil dias e noites. Sua perspectiva mudará, pode ter certeza…
O Crepúsculo do Mundo (Das Dämmern der Welt – Alemanha, 2021)
Autor: Werner Herzog
Data original de publicação: 23 de agosto de 2021
Editora original: Carl Hanser Verlag GmbH & Co. KG
Data de publicação no Brasil: 07 de abril de 2022
Editora no Brasil: Editora Todavia
Tradução para o português: Sergio Tellaroli
Tradução para o inglês: Michael Hofmann (versão lida para a presente crítica)
Páginas: 144