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Crítica | O Corvo – Livros 1 a 5

Um instrumento puro de vingança.

por Ritter Fan
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Por diversas razões, incluindo e especialmente a forma como as editoras americanas mainstream tratavam seus artistas, as editoras independentes proliferaram espantosamente entre meados dos anos 80 e meados dos anos 90, com um vasto número de HQs autorais sendo publicadas. Foi nessa época que a Image Comics e a Dark Horse Comics nasceram, assim como foi a era de quadrinhos inesquecíveis como os das Tartarugas Ninja e O Corvo. Enquanto os quelônios com nomes de mestres renascentistas tornaram-se uma gigantesca franquia multimídia que elevou a obra original de independente para uma febre pop que dura até hoje, a criação de James O’Barr permaneceu bem underground por um bom tempo, apenas ganhando um pouco mais de destaque fora das bibliotecas de profundos conhecedores dos quadrinhos quando, em 1994, o fatídico longa-metragem adaptando-a foi lançado e ficou marcado pela trágica morte de Brandon Lee.

O Corvo é uma HQ criada em 1989 por O’Barr primordialmente para ele extravasar a dor da perda de sua noiva Beverly em um acidente envolvendo um motorista bêbado em Berlin alguns anos antes. É, portanto, uma obra fortemente marcada pelo luto, pela raiva interior e pelo desejo de vingança. Diferente de outros personagens do quadrinho que usam a vingança como uma forma de justificar seus atos heroicos, como é o famoso caso do Batman, mas também do Justiceiro e de diversos outros, O Corvo é a vingança encarnada que tem no assassinato daqueles que mataram sua versão humana – Eric – e estupraram e mataram sua noiva Shelly sua única razão de ser. Revivido por um corvo mítico que representa uma espécie de força ancestral que perpassa todas as religiões e usando muita iconografia e citações bíblicas, Eric é, agora, um agente que leva à morte aqueles que lhe fizeram mal ou ajudaram a fazer mal de alguma forma, com um semblante icônico que parece ser a fusão de Alice Cooper com Robert Smith, do The Cure e o Coringa.

Com uma ambientação gótica e sem vergonha de usar a violência nos atos de seu protagonista, O’Barr constrói um universo claustrofóbico, sujo, pessimista e niilista, em que a morte está em cada esquina, com os poucos vislumbres de aspectos positivos, como é a amizade entre Eric e a jovem Sherry – uma espécie de projeção de sua amada noiva -, sendo manchados pelo realismo da situação em que a menina se encontra e o que ela ainda tem o potencial de testemunhar em sua vida. Mas O Corvo não só não quer sair daquele ambiente, pois é nele em que sua vingança pode ser perpetrada, como ele parece realmente desfrutar de sua capacidade de infligir dor e morte com seus novos poderes, basicamente a imortalidade e a superforça.

Obviamente que o sobrenatural faz parte da narrativa, mas não só a origem do protagonista só é completamente revelada no quarto e penúltimo livro (os quatro primeiros foram pulicados em 1989 por uma editora e o último somente algum tempo depois por uma segunda editora), como o lado místico ganha pouquíssimo contexto, realmente deixando tudo para a imaginação do leitor. É como um pacto faustiano, mas sem a contrapartida, já que não vemos Eric oferecer sua alma, mas sim, apenas, retornar da morte como um instrumento que causa mortes, um efetivo ceifador de todas as vidas que foram responsáveis por sua morte e a de sua noiva, além de todos aqueles que se atreverem a tentar impedi-lo de alcançar esse objetivo.

Com um roteiro com diálogos poéticos por parte do protagonista que bebe de Shakespeare a Milton, com todas aquelas sombras de Edgar Allan Poe cujo poema O Corvo (The Raven) muito claramente também serviu de base inspiradora para o autor, a história segue um passo quase lírico, mas ao mesmo tempo opressivo, melancólico e pesado. Na arte, O’Barr faz o mesmo e esmera-se em uma ambientação tumultuada, com traços crus, com muita movimentação corporal, quase que como se cada página gritasse desesperadamente, clamando por vingança, por uma saída do martírio vivido por Eric. Apenas as páginas em que O’Barr lida com as lembranças de Eric sobre sua via com Shelly é que ganham uma pega onírica, leve e realmente bonita, somente para essa beleza ser estilhaçada para o retorno ao presente e ao morticínio levado à cabo pelo Corvo. Diria que falta um pouco de coesão pela forma como os “livros” foram publicados e intercalados por histórias curtas na versão completa, mas o resultado geral é sólido e até mesmo assustador.

A primeira minissérie de O Corvo – que é uma história perfeitamente autocontida – é um dos grandes exemplares dos quadrinhos independentes dos EUA em tempos modernos e uma obra perturbadora, que não doura a pílula e entrega uma visão doente, sem saída e sem rodeios do vigilantismo e da justiça com as própria mãos. É como um tapa na cara de leitores mais acostumados a uma visão romântica e super-heroica do assunto. O’Barr realmente parece chegar à sua catarse e, no processo, ele criou uma HQ marcante e realmente inesquecível.

O Corvo (The Crow – EUA, 1989)
Roteiro: James O’Barr
Arte: James O’Barr
Editora original: Caliber Comics (Livros 1 a 4), Tundra Publishing (Livro 5)
Data original de publicação: fevereiro a maio de 1989 (Livros #1 a 4); 1990 (Livro 5)
Páginas: 272 (encadernado pela Gallery Books lido para a presente crítica)

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