Em 1989, Batman, de Tim Burton, reacendeu o interesse de Hollywood por adaptações de quadrinhos, com os anos 90 funcionando, no agregado, como uma década em que diversos testes foram feitos, tanto com personagens criados há décadas como Dick Tracy, O Fantasma, Capitão América, Juiz Dredd, Blade e Batman (três outras vezes!), quanto com personagens com relativamente poucos anos de vida, como As Tartarugas Ninja, O Máscara, Homens de Preto, Tank Girl e Rocketeer, com variados graus de sucesso. Mas nenhuma das produções dessa categoria nessa década pode ser comparada de verdade com O Corvo, baseada na HQ underground homônima que James O’Barr publicara no mesmo ano em que Michael Keaton vestiria a armadura de pescoço duro do Homem-Morcego.
Se o trágico falecimento do talentoso Heath Ledger aos 28 anos, em 2008, alguns meses depois do encerramento das filmagens de Batman: Cavaleiro das Trevas, em que ele viveu o Coringa, personagem psicótico de rosto pintado, chocou o mundo, a morte de Brandon Lee com exatamente a mesma idade, só que durante as filmagens de O Corvo, e em razão do tiro de uma arma que não fora checada apropriadamente (semelhante ao que se repetiu muito recentemente na produção de Rust, temos que lembrar) exatamente na cena do assassinato de seu personagem, Eric Draven, que se transformaria em uma alma vingativa de rosto pintado, foi ainda mais arrasador, algo amplificado pelo fato de Draven ser seu primeiro papel de destaque e ele ser filho de ninguém menos do que o lendário Bruce Lee, por sua vez também falecido muito novo, aos 32 anos, quando começava sua carreira hollywoodiana.
A decisão de continuar com a produção diante da tragédia foi um ato de coragem e também, claro, de matemática financeira, pois Hollywood é Hollywood e essa questão nunca, em circunstância alguma, ficará de fora da equação, com a Miramax adquirindo os direitos de distribuição do longa e injetando mais oito milhões de dólares para que as modificações necessárias fossem feitas, com sequências reescritas e com uma das primeiras vezes em que um ator foi parcialmente substituído por um dublê de corpo, no caso Chad Stahelski (que, anos mais tarde, se notabilizaria na direção dos longas da franquia John Wick), ganhando “maquiagem” de computação gráfica (também em 1994, o mesmo ocorreu com John Candy em Dois Contra o Oeste e algo semelhante, mas sem CGI, obviamente, acontecera com Bruce Lee, em O Jogo da Morte, de 1978). Mas O Corvo, felizmente, não é memorável somente em razão da tragédia que se abateu sobre a produção, já que o longa anda sozinho com suas próprias pernas e, de seu próprio jeito, subverte muitas das expectativas do que um filme baseado em quadrinhos deve e pode ser.
Tim Burton sem dúvida alguma esmerou-se nos visuais góticos em Batman e Batman – O Retorno, mas o gótico das produções da Warner é o gótico chique ou, pelo menos, o gótico bonito o suficiente para não chocar muito os engravatados e agradar uma vasta parcela do público. O cineasta Alex Proyas, egresso da direção de videoclipes e estreando em longas, partiu para o gótico puro, por assim dizer, com uma abordagem que usa o estilo não apenas pelo estilo, mas para basicamente “adoecer” toda a película, como uma manifestação audiovisual de um estado de espírito perturbado e de uma cidade condenada por atos indescritíveis de violência, algo que ele apuraria ainda mais em Cidade das Sombras. E isso era exatamente o que a HQ de O’Barr pedia, até porque ela fora criada como uma forma de o autor lidar com a morte de sua própria noiva em razão de um acidente envolvendo um motorista bêbado. O Corvo é, assim, uma manifestação de desejos que tentamos ao máximo enterrar, desejos esses que envolvem atos de violência contra aqueles que nos fizeram mal ou que fizeram mal a nossos entes queridos; é uma representação das sombras que vivem em todos nós e que fazemos de tudo para suprimir todos os dias.
Tudo em O Corvo é decadente, escuro, sujo, molhado e claustrofóbico, além de sádico e violento. Partindo de sua premissa, que lida com um homem (o já mencionado Eric Draven de Lee) que ressuscita em razão de forças místicas que se manifestam como um corvo para vingar-se tanto de seus assassinato quanto do assassinato e estupro de sua noiva Shelly Webster (Sofia Shinas), o longa é uma sucessão de sequências em que o protagonista mata todos os responsáveis diretos e indiretos pelo que aconteceu um ano antes intercalada com momentos em que ele interage com o gato branco Gabriel (a mais evidente das várias referências bíblicas, também presentes na HQ), com a menina Sarah Mohr (Rochelle Davis), que ele e Shelly ajudavam, e com o detetive rebaixado a policial de rua Daryl Albrecht (Ernie Hudson). Não há construção ou desenvolvimento de personagens propriamente ditos, mas sim o bom uso de arquétipos, seja a menina representando a pureza e o policial representando o dever, ou, claro, Draven representando a Morte, a pura expressão do desejo incontido de vingança.
Mesmo assim, o roteiro de David J. Schow e John Shirley consegue deixar a questão moral permanentemente como um subtexto vivo em O Corvo, algo que Proyas manifesta assertivamente quando abre espaço para a luz da humanidade de Eric Draven aparecer por entre as sombras, mas sem jamais fazer concessões sobre o que precisa ser feito, inclusive fazendo de Albrecht um cúmplice na mortandade que pontua o longa. Não gosto que os crimes perpetrados pelos vilões um ano antes não foram apenas crimes de oportunidade como nos quadrinhos, o que acrescenta aleatoriedade, medo e caos em situações prosaicas, mas não conto isso como um aspecto negativo em minha avaliação. No entanto, tenho problemas com os 20 minutos finais da obra, em que o chefão do crime na cidade, Top Dollar (Michael Wincott), revida o ataque de Draven tentando matar o corvo totêmico que, segundo sua amante de aura mística Myca (Bai Ling), é a conexão entre a morte e a vida. Nesses minutos finais, a ousadia visual e a simplicidade narrativa que não tem vergonha alguma em ser apenas o que é cai na armadilha dos quadrinhos mainstream, que precisa de um grande confronto para encerrar a história. Proyas até se esforça para manter a pegada sombria e gótica, ajudado pelo fato de a sequência passar-se em uma igreja, mas o embate é, em essência, pura mesmice hollywoodiana.
A atuação de Brandon Lee não tem nem de longe o tipo de intensidade e profundidade que vemos na de Ledger, mas o ator pelo menos tem presença em tela ajudado pela maquiagem, penteado e figurinos góticos inspirados em uma mistura de Alice Cooper com Robert Smith, do The Cure, e o Coringa, e pela belíssima direção de arte de John Marshall e Simon Murton e sobretudo pela direção de fotografia de Dariusz Wolsk, quase que personagens pulsantes por seus próprios méritos. Por outro lado, talvez por um vício de origem, considerando seu passado com videoclipes, Alex Proyas tenha determinado uma montagem com linguagem desorientadora, por vezes cansativa, por parte de Dov Hoenig e M. Scott Smith, mesmo considerando que, por vezes, ela esteja ali para substituir a ausência de Lee nas sequências que ele acabou não filmando (foram poucas, mas algumas importantes, já que ele faleceu faltando apenas três dias de trabalho).
O Corvo não é uma obra-prima e nem mesmo o melhor filme baseado em quadrinhos de sua década, mas ele se destaca por sua simplicidade falsa e crueza pura, por sua abordagem quase que completamente sem freios no que se refere à violência e por seu visual ousado e belíssimo que evoca o próprio desejo de vingança, mas sem glosar por completo a humanidade. Se acreditarmos que a morte de Brandon Lee realmente era inevitável mesmo considerando que ela foi resultado de negligência, então não consigo imaginar elegia melhor a ele do que seu último filme.
O Corvo (The Crown – EUA, 1994)
Direção: Alex Proyas
Roteiro: David J. Schow, John Shirley (baseado em quadrinhos de James O’Barr)
Elenco: Brandon Lee, Rochelle Davis, Ernie Hudson, Michael Wincott, Bai Ling, Sofia Shinas, Anna Levine, David Patrick Kelly, Angel David, Laurence Mason, Michael Massee, Tony Todd, Jon Polito, Bill Raymond, Marco Rodríguez, Chad Stahelski
Duração: 102 min.