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Crítica | O Corte (2005)

Eliminando concorrentes.

por Frederico Franco
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As primeiras cenas de O Corte lançam o espectador despreparado diretamente em uma sequência frenética de ações: um assassinato à sangue frio em uma chuvosa noite, seguido por uma gravação da confissão por parte do criminoso. Nesse ponto, ele não é ninguém, sequer se sabe seu nome; é, até aqui, apenas um assassino desprezível. Esse início sufocante é o que determina o ritmo geral do filme impresso pelas lentes implacáveis de Costa-Gavras. Tanto que, logo em seguida, voltando no tempo, somos rapidamente apresentados ao protagonista para além de seus crimes. Bruno Davert é um homem como qualquer outro: um marido, pai de duas crianças e funcionário exemplar da mesma empresa há quinze anos. Antes bandido, agora surge certa identificação em relação ao personagem principal – nesse momento, é muito difícil, inclusive, relacionar essa pacata figura ao crime cometido. E essa empatia sentida por Bruno não para por aí. Repentinamente, depois dos quinze anos de serviços prestados, sua empresa o dispensa, deixando-o à deriva, perdido, sem rumo profissional. Portanto, agora, mais proximidade: trata-se de um proletário, uma vítima do vil sistema capitalista. Então, a partir desse momento, Bruno cidadão pacato e Bruno assassino começam a ser aproximados um do outro. 

É consenso de que um dos pilares da manutenção da sociedade do capital é colocar o proletário contra o proletário, a fim de desviar a raiva e a violência do próprio sistema. Competição por vagas de trabalho, criar uma sensação de falsa positividade em relação ao capitalista e alimentar ataques a seus pares de classe social: pequenas ações criadas pela burguesia para a sedimentar com mais força suas principais arestas de controle da massa. O Corte, especificamente, trabalha com tais questões para além da esfera do discurso, explorando conflitos físicos, braçais, entre o proletariado. Tudo começa quando, em retrospecto, Bruno Davert, buscando uma nova entrada no mercado de trabalho, resolve assassinar concorrentes que, assim como ele, pleiteiam uma importante vaga – aqui os dois Brunos já podem ser enxergados com mais proximidade. Com os primeiros assassinatos, também segue o ritmo elétrico apresentado nas primeiras cenas. A é câmera inquieta, poucas vezes descansa ou se encontra parada, em um constante estado de paranoia, característica já vista em outros trabalhos de Costa-Gavras, como em Estado de Sítio e Z. As mortes são rápidas, rasteiras, sem floreios técnicos: tiros errantes, tortos. Bruno claramente não é um assassino treinado ou algo do gênero. Trata-se, aqui, de um civil com nenhuma experiência com armas de quaisquer tipos. José García, intérprete do protagonista, entrega, nessa altura do filme, um personagem inseguro, quase sufocado pela própria decisão de cometer os crimes – mãos trêmulas, fala errante, hiperventilando. Enquanto se mantém esse modus operandi errante, amador, O Corte é um deleite dramático e, sobretudo, de tons cômicos. 

Por mais que exista esse princípio de comicidade no amadorismo de Bruno Davert, não se pode deixar de lado que o cinismo com o qual os crimes são filmados traz ao final das cenas uma espécie de melancolia. Traz tristeza reparar que toda a energia disposta pelo protagonista para cometer os assassinatos é em vão. Matar seus pares não faz dele mais forte que o sistema, muito pelo contrário: é isso que o faz ser vítima do sistema. O que Bruno faz com seus concorrentes, alguém fará com Bruno. É disso que se alimenta o capitalismo, é assim que ele age. Direciona-se essa vontade de potência para o lado errado. O proletariado é visto, pelos olhos do sistema, como objetos, máquinas, corpos inanimados, coisas descartáveis. Existe, nessa dinâmica, um certo desprezo pela vida humana que é diretamente refletido pela câmera distante de Costa-Gavras; pouco se vêem os corpos e sua imagem depois de mortos não é evocada. A própria participação da polícia no filme parece ser protocolar, haja visto que os oficiais pouco parecem fazer força para solucionar o enigma de quem estaria matando concorrentes a uma vaga de emprego.

Passada a primeira hora do filme, percebe-se uma mudança razoavelmente drástica no comportamento de Bruno. Some a figura amadora, inquieta, dando espaço para uma maior sobriedade do personagem. É como se uma chave interna fosse girada fazendo com que toda sua personalidade tenha mudado. Essa transição, de certa forma, é até radical demais, parecendo algo aleatório, muito repentino. Parece uma transição à Walter White, mas sem tanta cautela narrativa: apenas acontece sem nenhum incidente incitante muito claro. É nessa maré, contudo, em que é expressa mais um pouco da melancolia presente na  dinâmica entre Bruno e suas vítimas. Ao interpelar um de seus alvos, surge um diálogo franco, honesto – e, de certa forma, comovente – entre o protagonista e outro concorrente à tão sonhada vaga de trabalho. É aqui, então, que há uma hesitação por parte do protagonista. Ao entrar em contato com a extrema vulnerabilidade do outro, reencontramos aquele Bruno de antes dos assassinatos, aquele que, no princípio, surgiu como elemento de identificação para com o público. No final das contas, o mais interessante é compreender o personagem de José García através de um olhar dialético, fugindo da dicotomia e aceitando suas contradições internas. Talvez exista apenas um Bruno que consiga internamente abarcar características diametralmente opostas. É o mesmo protagonista que mata e que, ao mesmo tempo, é um proletário como qualquer outro.

É verdade que, com a tomada da faceta mais sóbria de Bruno, cai o ritmo de O Corte. Aquela eletricidade presente na primeira hora do filme é deixada de lado. Os ataques deixam de possuir um caráter impensado ou aleatório, sendo cada vez mais programados, mudando, inclusive, a arma do crime a cada assassinato. Então, a eletricidade imposta por Costa-Gavras e por seu personagem amador some. Os crimes, antes, davam ao cotidiano de Bruno um algo a mais, um drama que ateava fogo em sua alma; depois disso, seus atos criminosos parecem mais eventos protocolares, um trabalho. Anteriormente, toda essa novidade causava uma grande excitação, mas agora o protagonista age com programação e rigor de um robô. Por mais que a queda do ritmo tenha justificativa na transformação de Bruno, não se pode deixar de dizer que o modo errático de Bruno, além de mais elétrico, também funcionava como elemento dramático mais potente.

Afinal, os fins justificam os meios?, pergunta ao fim da obra um dos filhos de Bruno. É óbvio que, ao longo do filme, essa indagação inevitavelmente permeia o imaginário do espectador – é algo quase implícito à totalidade do filme, mas parece que Costa-Gavras gostaria de deixar esse embate ético claro e cristalino para o público. Justificam ou não? Dentro da atuação capitalista apresentada pelo diretor, provavelmente não. Bruno segue o mesmo proletário do início do filme. As regras do jogo seguem a mesma, apenas certas peças foram alteradas. E mesmo assim, não foram tão alteradas a ponto de surtirem grandes mudanças. Ao final de O Corte, vence o capitalismo ao conseguir manter proletário contra proletário.

O Corte (Le Couperet) – Bélgica, França, Espanha, 2005
Direção:
Costa-Gavras
Roteiro: Costa-Gavras, Jean-Claude Grumberg
Elenco: José Garcia, Karin Viard, Ulrich Tukur, Yvon Back, Thierry Hancisse, Olivier Gourmet, Geordy Monfils, Christa Théret
Duração: 122 min.

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