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Crítica | O Consultor – 1ª Temporada

A versão sinistra de Mary Poppins.

por Ritter Fan
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Dentre as várias obras audiovisuais que criticam e satirizam o capitalismo, as melhores são as que não varrem para debaixo do tapete a tentação de se tornar capitalista, de se tornar a pessoa que se beneficia diretamente do trabalho assalariado e, claro, de enriquecer nesse processo. Afinal, a vida é uma ironia e essa é um delas, queiramos admiti-la ou não. O Consultor, nova série de Tony Basgallop – criador da recém-encerrada Servant -, baseada em romance de Bentley Little, faz justamente isso ao nos apresentar a um ambiente corporativo tomado de assalto por um misterioso “consultor” que aparece do nada, parece não saber muito do negócio e, mesmo assim, começa a dar ordens, aos poucos abrindo espaço para o afloramento das ambições de seus funcionários.

Tudo começa quando o jovem Sang (Brian Yoon), dono da CompWare, uma bem-sucedida desenvolvedora de jogos para smarthpones, morre brutalmente, algo que acontece logo nos primeiros minutos do primeiro episódio em uma sequência muito bem construída e inesperada. Com todo os funcionários ainda chocados e tentando entender o que vai acontecer com a empresa e com eles, eis que o Sr. Regus Patoff (o estranho nome é genialmente explicado com apenas um close somente para o espectador, de forma que fique claro, de início, que estamos diante de um mentiroso) chega para tomar controle de tudo, justificando sua presença por ali com um documento assinado pelo falecido. Interpretado por Christoph Waltz mais uma vez vivendo o tipo de personagem que o notabilizou, ou seja, o homem calmo, brilhante, muito bem articulado e sinistro, Patoff começa uma gestão nada ortodoxa aparentemente para impedir que a empresa vá à falência.

Apesar de Waltz estar sensacional em seu papel – só Waltz consegue viver Waltz com tanta perfeição assim! -, ele não é o único. Os dois outros personagens mais diretamente afetados pela chegada do consultor, a autodenominada liaison artística Elaine Hayman (Brittany O’Grady) e o programador Craig Horne (Nat Wolff), começam a tentar entender quem exatamente ele é e o que ele quer por ali. O’Grady e Wolff mostram-se, também, escalações inspiradas, pois ambos conseguem entregar personagens complexos, que vão muito além da “dupla heroica” padrão e que desafiam estereótipos. Elaine e Craig são os melhores exemplos daquilo que mencionei logo no primeiro parágrafo e que, não demora, começa a se revelar como o cerne da série e que pode ser resumido na eterna pergunta “até que ponto você é capaz de ir pelo que você quer?”.

Ah, mas o decorrer de O Consultor é inverossímil, alguns dirão em tom de reclamação. Minha resposta para isso é simples: em que momento a série afirmou ser verossímil, realista ou algo nessa linha? Vejam Regus Patoff como uma “Mary Poppins maligna” e pronto, tudo se resolve. Como ele faz o que faz, portanto, é semelhante à bolsa mágica da babá britânica e, lá mais para a frente, quando descobrimos do que ele é feito, o que explica a dificuldade que ele tem de subir a escada da CompWare, interpretem da maneira mais direta que, desconfio, foi a intenção de Basgallop: ele vale mais do que os demais reles mortais. Pronto. Não precisamos ficar mergulhando em detalhes e dúvidas que não são e não devem mesmo ser elucidadas ao longo de uma temporada que, tenho para mim, deveria ser a única, pois, para minha surpresa até, encerra muito satisfatoriamente todos os arcos narrativos.

O que realmente importa são as transformações de Elaine e Craig. O verniz de “heróis da vez” começa, aos poucos, a ser raspado, especialmente no caso de Elaine que, mesmo hesitantemente, enxerga nos bizarros acontecimentos uma chance de crescer dentro da empresa, algo que Craig vê com desgosto, o que o leva a “involuir” e a tornar-se mais uma vez o que foi, um sujeito guiado pelos prazeres momentâneos que a vida pode oferecer. É uma interessantíssima maneira de subverter a narrativa e de transformar Waltz não exatamente no vilão sobrenatural que ninguém consegue explicar (mais de uma vez sua conexão com o “diabo” é trazida à tona, bastando ver, por exemplo, como a cor das luzes dos servidores mudam de azul para vermelho quando ele passa), mas sim na prosaica figura de um chefe inescrupuloso procurando um pupilo.

Mas isso não significa que O Consultor não sofre de alguns males comuns à series do tipo, em que a veia sobrenatural – seja ela existente de fato ou não – é um de seus sustentáculos. Apesar de contar com apenas oito razoavelmente curtos episódios, a necessidade de se construir e manter o mistério ao redor de Patoff consome boa parte do tempo, criando situações que acabam sendo repetitivas, como as manhãs e madrugadas solitárias do consultor que são repletas de pedidos esdrúxulos. Craig e sua conversão forçada ao catolicismo para que ele possa se casar com sua noiva Patti (Aimee Carrero) é uma linha narrativa de pouco valor, mas que os roteiros insistem em manter acesa por toda a duração da temporada. No lado de Elaine, porém, tudo funciona de maneira mais fluida, com sua evolução lateral, digamos assim, sendo de longe a mais bem construída e desenvolvida ao longo da narrativa, culminando com o projeto do elefante.

Pintando um retrato inusitado – mas não menos verdadeiro – do mundo corporativo e do capitalismo, O Consultor acerta ao investir em seus personagens, deixando o estranho e o bizarro apenas na órbita do excelente personagem-título vivido por Waltz. Basgallop mais uma vez acerta o tom de uma obra incomum e repleta de significados, mostrando que o showrunner realmente sabe o que faz.

O Consultor – 1ª Temporada (The Consultant – EUA, 24 de fevereiro de 2023)
Criação e desenvolvimento: Tony Basgallop (baseado em romance de Bentley Little)
Direção: Matt Shakman, Dan Attias, Alexis Ostrander, Charlotte Brandström, Karyn Kusama
Roteiro: Tony Basgallop
Elenco: Christoph Waltz, Nat Wolff, Brittany O’Grady, Aimee Carrero, Henry Rhoades, Brian Yoon, Tatiana Zappardino, Michael Charles Vaccaro, Rumur Kristina Knowles, Erin Ruth Walker, Julie Sidoni, Ryan Leckey, Catherine Christensen, Ryan Bravo, Sydney Mae Diaz, Sloane Avery, Dianne Doan, Jake Manley, Gloria John, Juan Carlos Cantu
Duração: 263 min. (oito episódios)

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