Uma narrativa épica de três horas de duração, com um protagonista carismático, desenvolvimento estético primoroso e sintetização das longas ideias do seu ponto de partida homônimo, O Conde de Monte Cristo, publicado pelo francês Alexandre Dumas. Essa é a definição dessa nova versão do icônico enredo literário de vingança, constantemente traduzido para outros formatos narrativos. Sim, esqueça o que se fala de “adaptação” ou “obra original”, terminologias já ultrapassadas na dinâmica dos estudos semióticos. Quando lidamos com um filme do tipo, que toma como base uma história veiculada em outro suporte, chamamos de tradução, pois pela lógica, é o ponto de vista de uma determinada equipe de realização em torno de uma obra que pode ter múltiplas possibilidades interpretativas. Quando estamos diante da literatura, pensamos não apenas no livro em si, mas no contexto histórico do autor e na relação do conteúdo que é estabelecida com o leitor. Esse é o formato da estética da recepção. Sendo assim, com um panorama inicial sobre a falta de pertinência e sentido de muitas pessoas que partem em busca do filme para encontrar a “originalidade” de Dumas, posso por agora apresentar uma análise de O Conde de Monte Cristo, escrito e dirigido pelos franceses Matthieu Delaporte e Alexandre De La Pattilière, corajosa abordagem que, em sua extensão, em nada dialoga com as atuais plateias frenéticas, contaminadas pelo Efeito Tik Tok.
Em sua jornada sobre transformação, dor e injustiça, a produção nos apresenta Edmond Dantès, aqui interpretado com coesão e simpatia por Pierre Niney, um homem da navegação que, ao salvar uma pessoa diante de uma conflituosa situação de afogamento, é promovido ao posto de capitão. Apaixonado, ele está de casamento marcado com Mercedes (Anais Demoustier), mas o seu mundo desmorona quando, no bendito dia da união matrimonial, ele é preso, acusado de trair os ideais patrióticos de sua nação. A trama se passa em 1815, período conhecido como aproximação da era napoleônica, por isso, as relações sociais e políticas se encontram com os fios de ligação completamente tensionados. Edmond, na gloriosa casa dos 20 anos, vê o seu mundo se tornar opressor e angustiante. O complô, por sinal, que o levou para a prisão, foi ocasionado por seu primo, Danglars (Patrick Mille), antagonista que reflete o mote sobre ódio geracional estabelecido no enredo que também trata de questões de classe, sonhos, relações entre a libertação e a opressão, dentre outros tópicos temáticos deste melodramático épico concebido pelos franceses, mas com estrutura pomposa dos hollywoodianos.
Com diversas reviravoltas e sacolejos que nos tiram da obviedade constantemente, O Conde de Monte Cristo nos mostra como a vingança, algo que destacarei mais adiante, é um tema atemporal e, sedutor para o olhar humano dos espectadores que em algum momento, já estiveram em situação de retaliação ou se tornaram alvo da vingança alheia, esse se torna o tema central da história, algo já esperado de uma tradução do clássico romance de Dumas. O desenvolvimento geral, inclusive, é praticamente semelhante aos demais filmes que emulam o conteúdo gigantesco do livro. Edmond passa longo tempo numa prisão, situada numa ilha. Lá, ele conhece um homem mais velho, sábio, que será o seu mentor, uma figura que lhe diz onde encontrar um determinado tesouro templário. Assim, após uma trevosa jornada de encarceramento, o protagonista consegue escapar. Ele também encontra o tal tesouro e, para completar o processo, se torna um homem rico, apresentado socialmente como descrito no título da narrativa. Com essa base, os envolvidos no texto dramático inserem camadas de críticas sociais entre um ponto e outro, para assim, preencher o mote central: a esperada vingança.
Para acompanhar a pavimentação dos caminhos percorridos pelo protagonista vingativo, O Conde de Monte Cristo conta com uma cuidadosa equipe técnica, responsável por tornar a produção um luxuoso exercício da linguagem cinematográfica. Talvez não apresente novidades no que tange ao universo “Monte Cristo no Cinema”, mas, enquanto narrativa artística, nós podemos afirmar com toda certeza, é um esplendor audiovisual. Com locações em estúdio, divididas com passagens em cenários europeus autênticos, a direção de fotografia, assinada por Nicolas Bolduc, evita tornar a aventura sombria demais, dando ênfase aos planos abertos, iluminação intensa, bem como ângulos que favorecem o tom minucioso do design de produção assinado por Stéphane Taillasson, grandioso na arquitetura dos cenários, nos adereços de cada espaço fílmico e na composição de cores e texturas da direção de arte. O trabalho desse setor ganha bastante vigor com os figurinos de Thierry Delettre, também assertivos. Interessante observar, sobre esse ponto, que os personagens estão situados noutra época, no entanto, alguns pequenos traços evidenciam um tom contemporâneo ao visual do filme, em especial, a maquiagem e os cortes de cabelos, dentre outros. E, ainda sobre estética, para uma proposta épica assim, era preciso uma trilha envolvente. Jérôme Rebotier é o músico responsável, também eficiente em seu trabalho na elaboração da textura percussiva.
Ademais, sem contar com uma quantidade excessiva de tomadas dominadas por efeitos visuais, algo costumeiro no cinema contemporâneo, O Conde de Monte Cristo nos faz refletir, tal como seu livro e as demais traduções, sobre os efeitos impactantes da vingança para todos aqueles que estão envolvidos no esquema, independentemente do ponto de vista da estrutura do planejamento de quem busca retaliação. Para quem é muito leitor, sabe que a vingança é um tema que permeia a história da filosofia e da moralidade humana. Está na Bíblia Sagrada, nos clássicos da literatura e do cinema, nos telejornais, quando contemplamos casos mais escabrosos que a perspectiva ficcional. Para alguns, é algo que só causa sofrimento e perda de tempo, para outros, é o aflorar da “humanidade” de quem, em algum momento, se deparou com dilemas envolvendo a necessidade de retribuir o mal sofrido. Em linhas gerais, a vingança reflete uma resposta emocional que emerge como uma forma de restaurar o equilíbrio e reverter o ódio e a angústia diante do tal “mal sofrido”. Há, no entanto, questionamentos sobre a legitimidade da vingança como forma de justiça. Friedrich Nietzsche, por exemplo, filósofo do século XIX, apresentou uma visão provocativa sobre a vingança em alguns de seus escritos, ao versar que tal postura pode ser vista como um reflexo da fraqueza, um desejo de poder que se desvia da criação de um novo valor.
A busca por retaliação, segundo essa perspectiva, pode se transformar em um ciclo de dor e sofrimento, perpetuando a vítima em um estado de ressentimento. Aqui, a crítica nietzschiana aponta para a necessidade de transcender o desejo de vingança em favor de uma forma de superação e afirmação pessoal. Esse não é, como sabemos, o caminho de Edmond Dantès. Outros tantos filósofos deixaram longas reflexões sobre a vingança. A literatura, o cinema, as narrativas seriadas, os quadrinhos, dentre tantos outros suportes, nos apresentam múltiplas histórias que colocam o tema milenar como ponto nevrálgico de suas narrativas. É aquilo que, de forma genérica, chamamos de “abordagem universal”. Há tramas sobre vingança em níveis globais, tanto na ficção ocidental quanto na oriental. E, para muito além, os comentários sociais e políticos presentes no romance O Conde de Monte Cristo apresentam, salvaguardadas das devidas proporções comparativas, muitas conexões com as teias que conectam os relacionamentos contemporâneos no bojo das interações dentro destes âmbitos complexos de nossa existência em sociedade. Assim, grandioso, talvez o livro, um desafio para os leitores dos dias atuais, ainda será fonte de inspiração para muitas outras traduções que se embasem especificamente em sua estrutura literária ou, como nas quatro temporadas de Revenge, série que começou bem e depois perdeu seu rumo, utilize o mote apenas como uma âncora para a criação de algo que decida seguir por caminhos diferentes.
O Conde de Monte Cristo (Le Comte de Monte-Cristo) — França, 2024
Direção: Matthieu Delaporte, Alexandre De La Pattilière
Roteiro: Matthieu Delaporte, Alexandre De La Pattilière (baseado em romance de Alexandre Dumas)
Elenco: Pierre Niney, Bastien Bouillon, Anaïs Demoustier, Anamaria Vartolomei, Laurent Lafitte, Pierfrancesco Favino, Patrick Miller, Vassili Schneider, Julien De Saint Jean
Duração: 178 min.