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Crítica | O Céu Que nos Protege

por Fernando JG
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O filme de Bernardo Bertolucci, dono da perturbadora e fascinante trama amorosa que é O Último Tango em Paris (1972), propõe uma imersão visual nas profundezas de si mesmo, na busca de algo perdido e de uma ausência nunca preenchida. Uma adaptação de The Sheltering Sky, do escritor norte-americano Paul Bowles, a película faz uma bela interpretação do enredo proposto pela obra literária, trazendo uma unidade muito interessante e singular para o longa, cujo ritmo lento e amainado faz a condução dessa viagem interior. Apesar de sê-lo tematicamente muito parecido com o que vinha fazendo Wim Wenders com o seu cinema-de-estrada, a exemplo de Paris Texas, No Decurso do Tempo, entre outros, que constantemente traz o espelhamento personagem-cenário para demonstrar as ausências no interior do protagonista, O Céu Que Nos Protege, de Bertolucci (O Último Imperador, Novecento), expõe uma aridez, em si, ainda mais intensa, ao situar o drama no seio da infertilidade humana, que é o deserto do Saara e os seus nadas. 

Situado no pós Segunda Guerra Mundial e com o roteiro de Mark Peploe, a direção explora muito bem o tema da ausência, da transitoriedade e da dificuldade de reinvenção em meio à crise, apostando em uma trama que mostre – de modo intenso, e a partir de figuras de alegoria imagética, como a metáfora do deserto – a dimensão interior dos personagens. Trata-se, portanto, da história de Kit (Debra Winger) e Port (John Malkovich), um casal de escritores de Nova York que decide abandonar sua terra natal e partir em uma viagem sem volta prevista. Num momento de restauração de um mundo que foi devastado pela guerra, o casal também tenta reacender alguma chama que após dez anos de relacionamento começa a se apagar. A crise dos dez anos ganha forma e a viagem surge como uma tentativa de reparação, de redescoberta do outro e do amor. Junto com Tunner (Campbell Scott), o amigo do casal, o trio desembarca no continente africano.

A soberba e o controle rígido que exerce sobre o seus filmes faz com que Bertolucci entregue sempre obras consistentes e autorais. No entanto, não posso deixar de pensar em outras figuras importantes para a construção fílmica. Com fotografia de Vittorio Storaro, que fez um trabalho irretocável em Apocalypse Now, torna-se visível o cuidado com a manipulação imagética, que causa o deleite através do cenário, trazendo sempre um efeito que traduz o vazio, mirando paisagens de horizontes, planos abertos e locais inférteis, como se costurasse, através de imagens, a trama que o roteiro propõe. Esse é o trunfo do cinema: se na literatura temos as figuras de descriptio, de descrição, com finalidade a fazer-nos ver o que está sendo narrado, no cinema, a transposição dessa descrição pode ficar a cargo da fotografia, que, se bem trabalhada, faz com que vejamos e sintamos a dimensão do que está sendo contado, e assim é a fotografia de The Sheltering Sky.  A trilha sonora de altíssimo nível de Ryuichi Sakamoto, que trabalhou com Luca Guadagnino no fabuloso The Staggering Girl, conduz, ao lado da fotografia, a situação narrativa. 

A construção do aspecto onírico, assemelhando-se à estética lynchiana, sobretudo em Veludo Azul, é pensada de modo cuidadoso e mostra sua força no primeiro ato, com uma luz avermelhada sobre Port, fazendo uma bela aclimatação cênica. As cores são muito importantes para o longa, que também comunica através da paleta. O vermelho sobre Port indica uma intensidade, uma tendência ao mistério, à proibição, à paixão (aqui, no sentido de pathos). Estes aspectos são facilmente percebidos logo nos primeiros minutos, em que a direção explora essa dimensão onírica, com cenas à noite que se conectam, de modo direto, à noção de sonho. É neste plano onírico que Port sai em viagem rumo ao proibido, ao sensual, ao perigoso, em busca de um encontro provável com o desconhecido, desbravando o escondido da cidade, que também é uma busca pelo desconhecido de si mesmo. Afinal, à medida que o filme passa, percebemos que este é o motivo do longa: a busca.  

O filme retrata muito bem o resfriamento da relação e o distanciamento entre o casal, captando, pelo detalhe, o momento em que um se torna estrangeiro para o outro, e a outra pessoa se torna um estranho-familiar. A direção –  percebendo toda essa ideia de estrangeirismo, de distanciamento objetal, do momento em que a situação amorosa se torna um vazio – traduz essa indefinição para a mise-en-scène, gravando, em longos planos, a vastidão do Saara e do seu silêncio. Kit e Port são estrangeiros num outro continente, num outro país, em uma outra cidade, mas também são estrangeiros em si mesmos, e, acima de tudo, estrangeiros um para o outro. Devido a este último motivo, decidem partir em viagem, como tentativa de reconciliação e resgate.

A grande protagonista do longa, Kit, a esposa de Port, é uma personagem construída com uma grandeza interior notável. É ela quem sempre tem presságios, quem percebe as nuances, quem necessita de que o outro a perceba e a ame. Essas demandas são colocadas no decorrer do filme. Fica a impressão, contudo, de que a viagem, para ela, é, na verdade, um escape a tudo aquilo que representa a estabilidade moderna de uma grande cidade, que carrega consigo uma certa monotonia da rotina, uma certa prisão do sujeito, que parece que a sufoca. Após a morte de Port, atingido por uma epidemia de febre tifoide que assola a cidade, como em Morte em Veneza, de Luchino Visconti, Kit parece se libertar de algo, de uma ausência que se fazia presente pela figura do marido. E, então, ela mergulha numa dupla viagem interior: ao mesmo tempo em que ela está no núcleo interior de uma cidade da África Ocidental, em um núcleo pobre e afastado de tudo, como se no interior do interior, por outro lado, ela já não é mais a Kit que havia chegado de Nova York. Ela está imersa no de-dentro de si mesma. Uma viagem definitivamente sem volta. Kit está viva e também vivendo. Nos instantes finais, como quem resgatando Kit do perigo que é viver, a embaixadora dos Estados Unidos, depois de muita procura junto ao consulado, a encontra em uma cidade próxima ao Saara, e a traz de volta para toda a normalidade. Pega-a pela mão e a afasta de tudo aquilo. A viagem encontra um fim, mas a mudança nos parece permanente.

É sabido que ao se dedicar a traduzir uma obra literária para o cinema muitas coisas ficam de fora da rodagem, e é notório que ocorre um recorte do recorte, e que a experiência só se torna completa a partir da leitura do livro, do enredo original, que ilumina ainda mais os pontos obscuros do longa. O filme de Bertolucci se mostra em diversas camadas distintas, e de um modo muito simples, com paisagismos únicos, traz uma complexa reflexão sobre a transitoriedade e os estados de mudança das coisas que têm vida pulsante na Terra. Sem prejuízos para os que não leram o livro, a obra de Bernardo é um presente visual e uma troca muito sensível entre o cinema e a literatura.

O Céu Que Nos Protege (The Sheltering Sky, EUA, 1990)
Direção: Bernardo Bertolucci
Roteiro: Bernardo Bertolucci, Mark Peploe, Paul Bowles (autor do livro)
Elenco: Debra Winger, John Malkovich, Campbell Scott, Jill Bennett, Timothy Spall, Eric Vu-An, Amina Annabi, Philippe Morier-Genoud, Sotigui Kouyaté, Tom Novembre,  Paul Bowles, Ben Smaïl
Duração: 138 min.

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