Home FilmesCríticas Crítica | O Cerco (2021)

Crítica | O Cerco (2021)

por Michel Gutwilen
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O primeiro plano de O Cerco mostra, frontalmente e em contra-plongée, uma casa, que não parece exatamente uma casa, mas também não é exatamente um prédio (um dos personagens chega a indagar isso posteriormente). Trata-se da única vez que vemos tal estrutura, que é central para trama e é praticamente uma protagonista da mesma. Se há um grande destaque positivo a se destacar neste longa, ele reside no comprometimento do trio de diretores (Aurélio Aragão, Gustavo Bragança, Rafael Spínola) em promover um total deslocamento especial em sua mise-en-scène. Não há establishing shots da vizinhança, não há planos gerais, planos de transição, não há contraplanos, evita-se a profundidade de campo, a decupagem não quer clarificar a geografia ou arquitetura da locação principal do filme nem seus arredores. Que lugar é aquele, que vizinhança é aquela, como é a divisão arquitetônica em cômodos? Dentro da proposta principal, é uma estética visual alienante que funciona muito bem como um contra-estímulo ao espectador, deixando-lhe perdido sensorialmente, ao mesmo tempo que estimula um subtexto místico.

Porém, se há de se admitir que, espacialmente, a encenação é competente e faz sentido dentro da proposta de O Cerco, o grande questionamento fica no que tange a própria proposta em si. Para isso, é preciso tentar tirar o filme de seu próprio universo e colocá-lo dentro de um contexto de um certo tipo específico de cinema contemporâneo brasileiro. Mais especificamente, um cinema evidentemente de classe média que quer falar de política. Há uma leva de filmes que possuem a mesma “doença”, ainda que seus “sintomas” sejam diferentes. É como se todos evitassem a frontalidade e tivessem medo de abordar diretamente os assuntos que querem tratar. O envolvimento político precisa vir através de uma voz em off (diferentes sintomas: uma gravação de rádio; leitura de uma carta; narração narcisista de um diretor), artifício narrativo extremamente distanciado. A tal da alienação espacial é também mais um meio de se afastar da matéria que se busca falar sobre (enquanto isso, outras obras se afastam de outros modos, como filmagens de drones para filmar o povo). No mesmo sentido, extremamente sintomático é uma cena em que um personagem está vendo vídeos de protestos a partir de uma tela de celular. 

Reconheço o risco de estar fazendo uma única obra de bode expiatório para falar de toda uma corrente cinematográfica, mas é a primeira oportunidade que tenho de escrever sobre o assunto, ao passo que esse filme especificamente parece acumular tudo que venho reparando até o momento. Quer se falar de ditadura, de DOI, de tortura, de exílio, mas a sua própria presença é como um fantasma distante. Não só isso, mas a temática parece estar em uma camada interna que nunca se consegue alcançar devido à grossura de suas camadas externas marcadas pelo distanciamento, histórias paralelas — o plot do teatro; das três crianças; de Ana na casa — e metáforas. Se propõe todo um jogo de intelectualização e sofisticamento em torno da temática principal que ela vira uma agulha no meio de um palheiro. Há quem esteja enxergando O Cerco com uma certa autoconsciência ou até ironia dentro de tudo que ele representa, sendo que, de fato, ter esse olhar sobre o longa inverteria toda a sua dinâmica, mas tudo que eu consigo enxergar é uma obra que está se levando a sério até o fim. 

Fazendo o exercício hipotético-imaginativo de retirar o subtexto político de O Cerco, pensando que ele talvez fosse apenas um filme sobre uma casa mal-assombrada, consigo ver méritos neste “filme que não existe”. Afinal, como disse anteriormente, os diretores executam uma boa mise-en-scène, há um suspense e misticismo elevado, principalmente na subtrama das crianças, na qual há uma dubiedade muito forte diante da existência delas, uma dúvida sobre qual tempo (pretérito ou presente) elas fazem parte. O problema é que não é possível pensar em nenhum desses “méritos” por si só, uma vez que eles fazem parte de uma intenção maior de camuflar o filme político que existe ali, este sim o mote central.   

O Cerco — Brasil, 2021
Direção: Aurélio Aragão, Gustavo Bragança e Rafael Spínola
Roteiro: Aurélio Aragão, Gustavo Bragança, Rafael Spínola e elenco
Elenco: Liliane Rovaris, Geovanna Lopes, Marco Lopes, Matheus Lopes, Alberto Moura, Breno Nina, Aurélio Aragão, Gustavo Bragança, Rafael Spínola, Lobo Mauro, Fabricio Menicucci, Filipe Cretton, Doralice Maria, Iara Maria, Lindembergue Bragança, Lucas Nascimento, Lucas Santana
Duração: 87 mins.

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