Um trunfo temático e estético para o avanço do cinema brasileiro no território das narrativas de terror. É assim que podemos classificar O Cemitério das Almas Perdidas, produção mais recente de Rodrigo Aragão, o mago dos efeitos especiais e da maquiagem em nosso campo de realização cinematográfica. Logo em sua abertura, o tom homenageador é estabelecido. Dedicado ao mestre José Mojica Marins, o nosso Zé do Caixão, o filme é o sexto longa-metragem do diretor, conhecido também por incursões em Mangue Negro, A Mata Negra, dentre outras produções de menor orçamento. Agora, com algo em torno dos R$2 milhões, o cineasta conseguiu entregar um épico cheio de bons momentos, irregular em alguns passagens que quase eclipsam a sua totalidade, mas ainda assim, um material de peso para registro na história do sistema industrial cultural brasileiro, campo que tem alcançado crescimento vertiginoso, não apenas em decorrência de vários cineastas em torno da solidificação do terror como estilo genuinamente brasileiro, mas também por causa do atual contexto histórico em que vivemos, era de extremos assustadores, período de trevas e muita vergonha face ao que projetamos enquanto imagem de nação para o planeta, no contemporâneo.
Tão assustadora, por sua vez, é a nossa base, os primórdios de nossa história. Colonizados e colonizadores entram num embate, situado numa atmosfera medieval, tomada por características góticas, mesclado com momentos de muito sangue e violência. Ao longo dos 95 minutos do desenvolvimento de O Cemitério das Almas Perdidas, o cineasta Rodrigo Aragão, também responsável pelo roteiro, traça um panorama amplo de histórias em três tempos distintos. Vai para o nosso passado, para abordar um ritual de feitiçaria, chegando ao presente dominado pela sombra tenebrosa do “fascismo” disfarçado de ignorância religiosa por parte de uma massa envolvida nas brumas do ódio de classe, gênero e posicionamento político-social. Considerado não apenas pela crítica, mas por seu público e pelo próprio realizador, o filme é, até então, a etapa mais grandiosa do conjunto da obra de Aragão. Lançado em 2020, o seu filme dialoga com um nicho específico de consumidores brasileiros, tendo na maquiagem e nos efeitos especiais e visuais, os maiores atrativos de sua arte. Há elementos dramáticos notáveis, mas os aspectos visuais se destacam.
O elemento central da narrativa é o livro de São Cipriano, um material lendário que contém rituais satânicos capazes de conferir poder para as pessoas que o conjuram. Assim, ao costurar três linhas temporais no tecido narrativo, Rodrigo Aragão nos apresenta uma baita crítica social que atravessa a formação de nosso território enquanto nação estabelecida com suor, batalhas e muito sangue. Os índios e colonizadores, na abertura, entram em conflito e promovem o povoamento das almas penadas no tal cemitério do título, presas neste ambiente macabro e artisticamente formidável, parte integrante da eficiente direção de arte de Eduardo Cardenas e da direção de fotografia de Alexandre Barcelos, também muito adequada para o clima de medo e horror pretendido pelo filme. Mais adiante, temos os africanos em embate contra os europeus sanguinolentos e colonizadores, antecipação da trupe contemporânea de um circo, grupo que enfrenta a perseguição de fanáticos religiosos que consideram as suas atrações aberrantes e demoníacas. Todo esse espetáculo de horror é acompanhado pela ótima textura de João MacDowell na composição da trilha sonora, material que ganha adição do design de som tomado por gemidos, grunhidos, lamúrias, dentre outros tormentos sofridos pelos personagens deste evangelho de sangue e pavor.
Ainda sobre a direção de arte, antes de seguirmos para outros pormenores da análise, os elementos que compõem o volume da história também merecem destaque, das estátuas bastante representativas aos figurinos e ambientes de uma cenografia focada nos detalhes. As criptas, por exemplo, são partes importantes deste espetáculo de visualidade que também traz uma tese sobre as alucinações que povoam a nossa memória e atingem as nossas relações no presente. Roubado e levado ao Brasil do século XVI pelos jesuítas, o livro de São Cipriano é o objeto catalisador da agressividade e da violência que dominam as relações entre colonizados e colonizadores de uma nação forjada com o sangue de quem não detinha a força necessária para combater os invasores. Destaque para os desempenhos de Caio Macedo, Diego Garcias, Renato Chocair, Allana Lopes e Francisco Gaspar como Joaquim (missionário), Jorge (integrante do circo), Cipriano (jesuíta conjurador), Ayra (escrava subjugada) e Fred (administrador do circo), respectivamente. Eles desempenham papeis importantes nesta história fantasmagórica que traz a Igreja e o livro de São Cipriano como elementos temáticos que por sinal, já estiveram presentes em outras produções do cineasta Rodrigo Aragão, realizador com um longo e ambicioso projeto de carreira em ascensão.
O Cemitério das Almas Perdidas — Brasil, 2020
Direção: Rodrigo Aragão
Roteiro: Rodrigo Aragão
Elenco: Carol Aragão, Renato Chocair, Diego Garcias, Francisco Gaspar, Markus Konká, Allana Lopes, Thelma Lopes
Duração: 100 min.