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Crítica | O Cão da Morte, de Agatha Christie

Quebre os selos! Finalize os ciclos!

por Luiz Santiago
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O Cão da Morte é o conto que abre a coletânea de mesmo nome, publicada originalmente por Agatha Christie em 1933. Nesta história, a Rainha do Crime nos surpreende com uma incursão inesperada no reino do sobrenatural, algo que não era necessariamente era desprezado por ela (inclusive vemos elementos disso, tratados com muito mais cinismo, em O Cavalo Amarelo e No Final, a Morte, só para citar dois exemplos), mas foi evitado em sua bibliografia, especialmente em se tratando de resolver os enigmas. Ambientada na bucólica Cornwall, a trama é uma teia de mistério e suspense em torno da figura enigmática da freira Marie Angelique, assombrada por visões perturbadoras e detentora de um (suposto?) poder latente que desafia a lógica e a razão. Christie, conhecida por suas narrativas mais realistas e soluções práticas, se aventura aqui em um território literário pouco explorado em sua obra e obtém um resultado aplaudível.

Atribuo a atmosfera construída pela autora aqui àquela que encontramos em muitas tramas de horror cósmico. Essa abordagem é ainda finalizada com um enigma adicional, de caráter quase solene, colocando mais dúvidas sobre o sugerido poder da freira. O texto é construído em camadas de tensão, nos transportando para um universo onde a fé e a ciência se confrontam em um embate silencioso, muitas vezes confundindo o leitor sobre qual é o verdadeiro foco da autora com tudo isso. O jornalista americano William P. Ryan, ao ouvir o relato de um evento inexplicável ocorrido durante a 1ª Guerra Mundial, torna-se o fio condutor que nos leva ao coração do mistério: a freira Marie Angelique, a única sobrevivente de um ataque devastador a um convento belga. A partir desse ponto, a trama se adensa, revelando a história da religiosa e seu (suposto?) dom peculiar, capaz de invocar uma “fúria destruidora” denominada “Cão da Morte“.

O enredo é marcado por um mistério envolvente, que desperta suspeitas e conduz a atenção do público em várias direções. A princípio, espera-se que um crime seja desvendado, mas com o tempo, fica claro que a autora está mais interessada em explorar um mistério de natureza sobrenatural. Ela parece brincar com a lógica, ora sugerindo uma explicação racional, ora deixando a trama aberta a múltiplas interpretações, sem fornecer respostas definitivas. Esse tipo de escolha, especialmente em autores sem uma tradição no gênero, sempre me cativa. A figura do “Cão da Morte”, entidade espectral que “evoca a ira divina“, paira sobre a trama como um prenúncio de tragédia iminente. Agatha Christie manipula os elementos do conto, dosando suspense e revelações, mantendo o leitor preso à teia de mistérios “de outra dimensão” até o desfecho relativamente aberto se apresentar.

O jovem Dr. Rose, movido por uma ambição desmedida, surge como um contraponto à fragilidade da fé representada por Marie Angelique, tida como louca. Sua busca obsessiva pelo poder (difícil não imaginar que a autora estava se referindo às lideranças fascistas em ascensão na Europa, na década de 1930), materializada na tentativa de dominar a potência de um cristal tão importante para a freira, o conduz a um destino trágico, provando que a manipulação de forças ocultas pode ter consequências devastadoras. Essa morte, envolta em uma aura de mistério e simbolismos, reforça a natureza implacável do destino, especialmente quando este é desafiado por ambições desmedidas.

O Cão da Morte certamente impressionará os leitores habituados aos clássicos romances policiais de Agatha Christie, que definem grande parte de sua obra. Neste conto, porém, ela ultrapassa as fronteiras dos mistérios tradicionais, aventurando-se por temas como fé, outras dimensões, curiosidade e a busca pelo poder. Repleta de coisas que desafiam a lógica, a trama, tecida como um suspense psicológico eficaz, leva o leitor a um cenário que, embora comece de forma um pouco lenta, evolui com solidez. Assim, Christie reafirma sua versatilidade e capacidade de surpreender, mesmo em territórios menos familiares de sua vasta produção.

O Cão da Morte (The Hound of Death) – Reino Unido, outubro de 1933
Autora:
Agatha Christie
Edição original: Odhams Press
Edição lida para esta crítica: Harper Collins Brasil, 2023
Tradução: Isabela Sampaio
29 páginas

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