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Crítica | O Canto do Cisne

A escolha de Cameron.

por Ritter Fan
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Estreia de Benjamin Cleary tanto na direção quanto no roteiro de longas-metragens e veículo para mais uma soberba atuação de Mahershala Ali, O Canto do Cisne é uma ficção científica intimista, de atmosfera fria e desenho de produção lindo e minimalista que lembra Ex Machina ou a série Devs que, também como fazem esses dois exemplos que dei, colocam para discussão uma única pergunta. No caso, em linhas bem amplas, o roteiro indaga algo como “e se, com extremo sacrifício pessoal, você tivesse a chance de dar conforto à sua família?”.

Fui críptico na pergunta, pois pode ser que alguém queira entrar completamente ignorante na experiência deste filme, ainda que a revelação do que exatamente se trata a premissa venha nos primeiros 10 minutos da projeção, pelo que sequer considero como spoiler. Portanto, fica aqui esse parágrafo como buffer para quem decidir parar de ler, conferir a obra e, depois, voltar aqui para discuti-la. Ok?

Bem, para quem continuou, a história lida com Cameron (Ali) que, quando o filme começa, já foi diagnosticado com uma doença terminal, tendo relativamente poucos dias para viver. Quando o vemos, ele lida com um debate interno sobre seguir ou não com um “tratamento” especial, experimental e exclusivíssimo em que um clone seu, com todas as suas memórias até o ponto de ativação, passará a viver sua vida em seu lugar. Não se trata de uma cura, pois Cameron continuará com a doença e morrerá alguma hora, mas o clone, que teve seu sequenciamento de DNA alterado justamente para não desenvolver a enfermidade, sendo esta a única diferença entre o original e a cópia, será trocado por ele. Mas, como tudo na vida, há um preço: a família de Cameron – sua esposa Poppy (Naomie Harris), que recentemente perdeu seu irmão gêmeo Andre (Nyasha Hatendi) e seu filho de oito anos Cory (Dax Rey) – não pode saber da troca.

Todo o drama do longa se resume à relativa tensão sobre a escolha de Cameron. Será que ele seguirá em frente com o projeto para evitar que sua família sofra com sua morte ou mudará de ideia no último segundo? Pode ser que alguns achem isso muito pouco para sustentar a obra, mas tenho para mim que o processo de racionalização do problema é fascinante e dá o que pensar, especialmente considerando que a tecnologia, por mais que seja inalcançável no momento, não parece assim tão fora de esquadro para ser completamente impossível em futuro incerto e não sabido se a raça humana não se destruir antes. Além disso, vejo necessidade de calma e tranquilidade para uma premissa dessas realmente funcionar, e Cleary arregaça as mangas para criar uma abordagem introspectiva, contemplativa e profundamente melancólica que marca seu longa desde os primeiros segundos de projeção.

A memória tem um papel relevante na narrativa, com o espectador sendo brindado com flashbacks muito bem costurados na narrativa como sonhos ou lembranças de Cameron, que funcionam para dar estofo à sua vida pregressa desde que conheceu Poppy em um trem até o momento presente em que o casamento sofre uma crise. Diria que o cineasta peca um pouco ao manter a frieza da fotografia também nesses momentos do passado, mesmo que quebrando-a com a presença constante de música, cores levemente mais quentes e uma Naomie Harris inspirada e com presença que, por si só, ilumina e alegra os ambientes. Talvez tenha faltado um pouco mais de ousadia para criar momentos no passado que realmente consigam estabelecer o relacionamento do casal sem que seja necessário criar elementos exógenos, como é o caso da morte de Andre, para fortalecê-lo.

A ambientação sci-fi também é outro elemento que merece destaque, pois esse “futurismo” é cuidadosamente inserido visualmente na narrativa desde o momento em vemos Cameron, no trem, sendo servido por um robô-garçom (nenhuma relação, mas imediatamente lembrei-me de R2-D2 neste papel lá na barca de Jabba, em O Retorno de Jedi) que inclusive já estabelece o visual “Apple” – limpo, funcional, bonito – de todo esse futuro, o que inclui carros que se autodirigem, luzes que se acendem na medida em que portas são abertas (uma facilidade que tenho minhas dúvidas se é algo prático…) e assim por diante. Muito da “frieza” do longa vem justamente daí, com as instalações remotas da experiência de clonagem comandada pela Dra. Jo Scott (Glenn Close em um papel propositalmente ambíguo) sendo o maior destaque em termos de isolamento e abordagem médica e, portanto, prática, para um problema de ordem quase espiritual, o que inclui a própria ética do que é feito em relação à esposa que precisa ser mantida no escuro e, claro, ao clone, perfeitamente consciente de sua condição de cópia.

Decididamente, o longa perigosamente trafega a fronteira entre a contemplação e a pieguice e é Mahershala Ali que, com sua atuação dupla, segura toda a projeção do lado seguro dessa linha imaginária. As sutilezas de suas expressões faciais como Cameron e, depois, como “Jack”, sua cópia, são impressionantes, valendo uma segunda conferência só para focar em seu trabalho. De um lado, temos um homem torturado, que vive o dilema de quase que literalmente ter que entregar sua vida pessoal ao que essencialmente é um estranho de forma que sua família – e não ele – tenha continuidade sem soluços e, de outro, temos um homem com medo de perder sua chance de ter uma vida realmente vivida e não apenas baseada em memórias implantadas. É Ali que segura nas costas a estrutura narrativa do começo ao fim, mesmo quando contracena com Harris, Close e também Awkwafina, que faz essencialmente uma ponta, ainda que vital.

O Canto do Cisne faz muito, com relativamente muito pouco e, se o espectador estiver preparado para sentir e se angustiar pelo dilema de Cameron, sem cobrar qualquer vislumbre de ação ou de uma estrutura clássica de filme, com a figura fácil de um vilão, então haverá muito o que se extrair do début de Benjamin Cleary. A jornada é bonita, ainda que dura, e Ali entrega mais uma performance fora de série, o que por si só vale a conferência.

O Canto do Cisne (Swan Song – EUA, 17 de dezembro de 2021)
Direção: Benjamin Cleary
Roteiro: Benjamin Cleary
Elenco: Mahershala Ali, Naomie Harris, Awkwafina, Glenn Close, Adam Beach, Nyasha Hatendi, Dax Rey
Duração: 111 min.

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