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Crítica | O Caminho para Wigan Pier, de George Orwell

O retorno de Orwell à abordagem jornalística.

por Ritter Fan
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Nunca havia lido um livro em que o próprio editor o crítica negativamente em um prefácio, mas há sempre uma primeira vez para tudo, já que é exatamente isso que acontece em O Caminho para Wigan Pier, que marca o retorno de George Orwell à obra jornalística na linha de sua primeira, Na Pior em Paris e em Londres, de quatro anos antes. Victor Gollancz, socialista convicto que publicara todas as suas obras anteriores, teve enormes reticências sobre a segunda parte da obra apresentada a ele por Orwell e tentou convencer o escritor a publicar apenas a primeira, que tem enfoque puramente jornalístico, deixando de fora a segunda, mais carregada de opinião e de abordagem política de certa forma crítica ao socialismo. Como Gollancz não conseguiu, ele se sentiu obrigado a escrever o referido prefácio condenatório, em uma espécie de pedido prévio de desculpas aos seus leitores.

O impulso censor de Gollancz foi obviamente condenável, mas a decisão salomônica que ele acabou tomando foi a melhor possível, diante das circunstâncias, e que, vale lembrar pelas palavras posteriores do próprio editor, gerou saudáveis debates entre seus leitores por meio de cartas recebidas e de outras críticas publicadas. Mas o que Orwell fez para merecer esse pedido inicial de publicar apenas uma parte e, depois, o “ataque preventivo” de seu editor? A resposta para isso é simples: Orwell, defensor aberto do comunismo e do socialismo como soluções para as mazelas socioeconômicas do mundo, não era cego ao que ele via acontecer ao seu redor por aqueles que tanto defendiam quanto atacavam a doutrina e pelo que vinha ocorrendo na União Soviética. Orwell era uma figura que seria hoje em dia rara em razão de sua visão temperada, capaz de relativizar suas crenças mais arraigadas diante do que testemunhava e isso – em qualquer espectro político, vale notar – fazia dele um pensador sagaz, capaz de enxergar prós e contras com facilidade e chegar às suas próprias conclusões mesmo que contrárias ao que acreditava.

Como já adiantei, O Caminho para Wigan Pier é formado por suas partes bem diferentes. A primeira é um relato de sua experiência pessoal em Lancashire e Yorkshire, então duas cidades industriais ao norte de Londres de maneira semelhante à sua vivência em Londres e Paris alguns anos antes. Mas, no lugar de efetivamente viver como um despossuído para compreender a pobreza das classes mais baixas, aqui Orwell é mais claramente um jornalista observando e entrevistando trabalhadores locais para estabelecer as condições de trabalho e de vida deles, começando com uma família um pouco mais abastada – em termos comparativos – e “descendo” a escada nos subsequentes capítulos para deixar evidente os graves problemas enfrentados pela exploração de mineradores pelas classes mais altas, lidando em detalhes com moradia, condições sanitárias e alimentação, além de salários e o poder de compra desses salários.

Essa abordagem documental não só é abrangente e detalhada, como muito bem organizada e concatenada por Orwell, não deixando dúvidas sobre os problemas trazidos pelo capitalismo desregrado. Não é uma leitura agradável, obviamente, mas não só porque nunca é agradável ler sobre condições desumanas – ainda que seja importante, sem dúvida alguma -, e sim também porque Orwell carrega nos mínimos detalhes, especialmente quando lida com dinheiro, com o preço dos insumos e com o que compõe a alimentação dos trabalhadores. São diversas listas um tanto quanto cansativas que, talvez, ficassem melhor alocadas em um anexo ao final do livro e não entremeadas na leitura do conteúdo principal, quebrando um pouco da fluidez.

Na segunda parte, a que causou tanta polêmica, Orwell mergulha em sua análise pessoal sobre se o socialismo é ou não a solução para os problemas que ele detectou e, se é (e é, segundo ele), porque mais pessoas não abraçam o socialismo, no que ele então entra em questões incômodas para grande parte dos defensores do sistema econômico que desafia o capitalismo e que podem ser resumidas na percepção do autor de que são justamente aqueles que controlam os meios de produção que defendem o comunismo e socialismo, o que é uma contradição em termos e um ciclo fechado, que impede que a massa, que a população que mais se beneficiaria – em tese – do sistema, abrace os conceitos. O próprio Golancz, ironicamente, é prova disso, algo que é tornado ainda mais evidente pelo fato de ele tender a só publicar obras e ensaios que estão em linha com seus pensamentos. Se Orwell escrevesse nos dias de hoje, ele estaria atacando os ditos “socialistas de iPhone”, representativos das contradições entre o que se prega e o que se faz.

Mas essa segunda parte do livro, bem diferente da primeira, pareceu-me desorganizada e falha na maneira como Orwell vai do ponto A ao ponto B para além de seus achismos bem particulares. Não é que o que ele escreve não tenha mérito, mas faltou distanciamento e, muito sinceramente, método na forma como ele erige seus argumentos que defendem o sistema socialista ao mesmo tempo em que ataca a forma como ele é efetivamente executado ou panfletado. É inegavelmente uma leitura interessante, especialmente depois que a primeira parte, direta e indiretamente, condena as explorações do capitalismo, mas Orwell falha na profundidade com que expõe sua posição, por mais lúcida que ela seja.

O Caminho para Wigan Pier, com isso, acaba sendo uma obra valiosa, mas estranha que marca o início mais claro da visão crítica de George Orwell sobre a filosofia política e econômica que defende, algo que seria amplificado em suas obras posteriores. A denúncia que ele faz sobre as condições de trabalho dos mineradores na Inglaterra é feroz, mas o ensaio que segue daí parece menos embasado, ainda que deixe evidente que Orwell era um pensador independente, capaz de distanciar-se de tudo para olhar de seu próprio jeito para o mundo. O ataque preambular de Gollancz só deixa esse aspecto mais evidente ainda.

O Caminho para Wigan Pier (The Road to Wigan Pier – Reino Unido, 1937)
Autoria: George Orwell
Editora original: Left Book Club (Victor Golancz)
Data original de publicação: fevereiro de 1937
Editora no Brasil: Companhia das Letras
Data de publicação no Brasil: 12 de março de 2010
Tradução: Isa Mara Lando
Páginas: 288

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