O que eu sou é o Índio que não morre. Eu sou o pior pesadelo que a América jamais teve.
– Good Stab
Tenho certeza de que não é algo que acontece só comigo, mas meu interesse por obras de horror em geral, especialmente filmes, foi se perdendo na medida em que eu amadureci e as décadas se passaram. Se eu era um ávido consumidor do gênero durante a adolescência, hoje eu raramente procuro consumir obras do gênero. Mas amadurecimento não é, obviamente, a única explicação, pois há muito, mas muito mesmo material de horror que vai além de besteiras sanguinolentas com um serial killer mascarado ou criaturas estranhas nas sombras. Minha leitura de O Caçador de Caçadores de Búfalo, o mais novo romance do autor nativo americano Stephen Graham Jones, desbloqueou em minha mente talvez a melhor explicação que eu posso no momento oferecer sobre esse meu gradual desinteresse: o horror real é infinitamente mais poderoso que o fictício.
Parece óbvio, mas, pelo menos para mim, o nexo de causalidade não era tão claro assim e olha que eu já visitei muitos lugares que deixam dolorosamente evidentes os atos hediondos que o ser humano é capaz de cometer. Sem de forma alguma desmerecer as obras de horror e aqueles que as criam e as consomem com gosto, para mim a consciência desse horror real ao nosso redor nas mais diferentes naturezas e escalas diluiu completamente minhas experiências com o horror de “faz de conta” a ponto de eu relegá-las ao mesmo patamar em que coloco as odiosas “comédias românticas”, ainda que eu tenha perfeita consciência do quão injusto isso é. Mas chega de falar sobre mim e deixe-me contextualizar a obra sob análise e, com isso, explicar meu raciocínio: Jones tece uma narrativa de horror ficcional em vários níveis, uma literal “história dentro de uma história dentro de uma história” que deriva diretamente de um horror real, que foi o chamado Massacre de Marias, em que algo como 200 nativos da Nação Piegan Blackfeet, a maioria mulheres, crianças e idosos, foram chacinados pelo exército americano em 1870 às margens do rio no então Território de Montana que dá nome ao ocorrido. É uma narrativa em abismo (ou mise en abyme) por excelência construída com qualidade e, diria mais, impressionante simplicidade pelo autor, ele mesmo da referida nação.
Tudo começa em 2012, com a descoberta de um diário escrito 100 anos antes por Arthur Beaucarne, pastor de uma paróquia luterana em Montana que é entregue à Etsy Beaucarne, sua única descendente lúcida (seu pai sofre de demência), uma professora adjunta que busca desesperadamente tornar-se titular. A história de Esty é, por assim dizer, o aro mais exterior dos círculos concêntricos da narrativa por sua vez contextualizada pelo referido massacre, e, por isso mesmo, ela só aparece como recurso de enquadramento no começo e no final do romance. O segundo aro é justamente a história do pastor narrado em detalhes no diário que Etsy lê inicialmente com o objetivo de usar essa história como uma forma de conseguir o que quer em termos profissionais. O que levou Arthur a escrever o diário foi a chegada de um misterioso índio (aqui sou eu usando a nomenclatura do personagem e, por conseguinte, do autor) em sua igreja querendo aparentemente confessar-se e é a história de Good Stab (cujo nome poderia ser traduzido como Boa Facada) que compõe o terceiro aro desses círculos e que aos poucos vai revelando o que exatamente ele é, o que ele fez e o porquê de ele ter procurado o pastor que ele “rebatiza” de Three-Persons (Três-Pessoas) em uma esperta referência à Santíssima Trindade.
Sem entrar em detalhes, basta dizer que, com um compasso lento, mas muito bem cadenciado, em um belo exemplar de narrativa de queima lenta, Stephen Graham Jones funde horror real histórico com horror sobrenatural em uma história que atravessa gerações, deixando bem evidente o ônus ancestral pelas atrocidades cometidas pelo homem branco aos nativos do continente em que chegaram. Não diria que a história contada por Good Stab guarda surpresas daquelas que fazem o queixo cair, até porque esse tipo de artifício é superestimado e, para mim, um sinal de tirar algo inesperado da cartola é muito mais importante do que contar uma história que guarda lógica interna, mas os acontecimentos da tripla narrativa são muito bem casados, uma alimentando a outra e ilustrando de maneira muito eficiente a perniciosa e genocida presença dos europeus e seus descendentes no Novo Mundo, algo que é, claro, simbolizado pela quase extinção dos búfalos – tecnicamente bisões, pois o búfalo é um outro animal, ainda que seja comum por lá chamar os bisões de búfalos -, fonte de sobrevivência dos nativos que foi inclementemente caçada pelos homens brancos.
No entanto, enquanto as histórias de Three-Persons e de Good Stab funcionam de maneira irretocável, com direito a uma quantidade desconcertante e assustadora de mortes das maneiras mais horrivelmente variadas (e não falo do Massacre de Marias aqui que fica “só” como um pano de fundo doloroso), além de uma construção da mitologia sobrenatural que traz elementos novos e fascinantes à um tipo de entidade muito explorada na literatura e no audiovisual, o mesmo não acontece com o enquadramento em que Esty Beaucarne é a protagonista. Nele, o tom da narrativa é muito diferente do restante, algo que é natural pela diferença entre as épocas, mas que Jones não consegue lidar bem o suficiente a ponto de o leitor ficar realmente engajado nas decisões e ações de Etsy. Fica parecendo que o autor adicionou a personagem em algum ponto bem adiantado de seu processo de escrita do romance, o que a deixou com uma construção acelerada que, porém, não a retira da mera superfície, do mero artifício narrativo. Por outro lado, justamente por ele não dedicar muito tempo à personagem é que esse problema no romance não é muito sentido e, com isso, não afeta seu grande miolo em que aprendemos sobre Three-Persons e Good Stab.
O Caçador de Caçadores de Búfalo é literatura de horror que assusta não com seus elementos sobrenaturais ou com o morticínio protagonizado por seus personagens, mas sim ao desnudar o que nós somos capazes de fazer no mundo real mesmo, esse em que vivemos no dia a dia e deixamos nossas impressões digitas por todo o lugar. Stephen Graham Jones sabe dos horrores que seus antepassados viveram e ele usa isso no contexto ficcional para tornar a experiência de leitura de sua obra em uma espécie de penitência benigna que abre olhos, faz queixos caírem e incomoda profundamente quem tiver um pouco de consciência sequer e isso para dizer o mínimo. Não há horror fictício que possa competir com a realidade.
O Caçador de Caçadores de Búfalo (The Buffalo Hunter Hunter – EUA, 2025)
Autoria: Stephen Graham Jones
Editora: Simon & Schuster / Saga Press
Data original de publicação: 18 de março de 2025
Páginas: 448