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Crítica | O Brutalista (2024)

Só tem tamanho.

por Luiz Santiago
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O brutalismo, em sua essência arquitetônica, firma-se como metáfora para a condição humana em O Brutalista, de Brady Corbet. Nascido do concreto aparente — material que desafia a delicadeza ao exibir solidez e fissuras com igual crueza –, o estilo é usado pelo diretor para encarnar um paradoxo: a busca por reconstruir, sobre escombros históricos e pessoais, não somente edifícios, mas identidades dilaceradas. Assim como o béton brut pós-guerra, que rejeitava ornamentos em favor da honestidade construtiva, o protagonista László (interpretado com densidade por Adrien Brody) ergue-se como um edifício em permanente estado de construção, onde cada rachadura expõe a tensão entre a angústia íntima e a necessidade de funcionalidade social. Corbet, ao entrelaçar a estética brutalista à narrativa, não apenas evoca a aspereza do concreto, mas a transforma em linguagem: as linhas brutas da arquitetura cercam a topografia de uma alma traumatizada e em colapso, enquanto as janelas estreitas e o teto alto de um prédio cultural, que tomará a maior parte do filme, sugerem a claustrofobia de quem tenta, em vão, escapar de seus próprios alicerces. No primeiro bloco do longa, o diretor estabelece um diálogo entre a monumentalidade do estilo e a fragilidade do indivíduo, questionando até que ponto a exposição da estrutura — seja de um prédio, seja de um homem — pode ser, ela própria, um ato de resistência ou de autodestruição.

Ambientado no pós-guerra, período de ebulição urbana, explosão demográfica e influxo migratório europeu aos Estados Unidos, O Brutalista entrelaça a jornada do protagonista à estética arquitetônica, usando-a como metáfora sociohistórica ao explorar as contradições de um “sonho americano” que, embora erguido sobre promessas de liberdade, mantém-se aprisionado a estruturas segregadoras de ordem étnica, cultural, de classe e gênero. As formas geométricas austeras e a paleta monocromática do estilo, aqui, se unem a um sistema que oscila entre a utopia modernizadora e a decadência ética, dualidade que Brady Corbet explora através de cenas que se desdobram em alguns bons diálogos. O rosto angustiado de Brody, marcado por sombras duras, denuncia o custo humano por trás de ideais grandiosos. Cada close-up do protagonista e cada linha reta do cenário convergem para uma pergunta: até que ponto a integridade pode resistir à corrosão do poder?

A opção do cineasta pelo VistaVision — tecnologia que amplia a escala da imagem com muita precisão — reforça a ambição de traduzir o brutalismo em linguagem fílmica: as composições simétricas, de rigor geométrico obsessivo, ecoam a frieza do estilo, enquanto planos incomuns como os da Estátua da Liberdade (símbolo irônico em meio a narrativas de exclusão), buscam imprimir um peso histórico às expressões de Adrien Brody, cuja ascensão é marcada por xenofobia, classismo, antissemitismo e pelo trauma do estupro. Entretanto, a obsessão formal, aqui, revela-se uma faca de dois gumes: cada enquadramento impecável, cada alusão a pilares e fissuras, acaba por soterrar a dimensão humana sob camadas de grandiosidade estéril. A trama, já fraturada por uma montagem abrupta e personagens relegados a esboços textuais, vê seus diálogos mais contundentes sumirem no vácuo entre o monumental e o íntimo, como rachaduras preenchidas por uma argamassa visual. Corbet, ao priorizar a arquitetura da imagem sobre a fundação dramática, entrega uma obra cuja força plástica, inegável, não compensa a sensação de que, sob o concreto, faltam alicerces narrativos — e o filme, como um prédio inacabado, exibe mais promessas do que moradias habitáveis.

Coube a Daniel Blumberg a tarefa de edificar uma trilha sonora que dialogasse com a aspereza do brutalismo sem ceder ao peso literal; e, em boa parte do filme, seu trabalho é notável. Partindo de acordes metálicos que evocam o impacto de um cinzel sobre concreto, o compositor edifica uma partitura que mostra opressão e libertação dissonantes, onde as batidas ritmadas repetem a cadência de uma construção. Na primeira metade do filme, cada compasso arrastado e cada silêncio abrupto funcionam como extensões coerentes: os ruídos estridentes, as modulações bruscas, o jazz experimental, o piano sincopado e melancólico, tudo ecoa a bruta materialidade do estilo arquitetônico que inspira a fita. No entanto, à medida que as 3h34 desse brutamontes avança, o “mais do mesmo” se instala e a trilha perde sua afiada precisão. O que antes era um contraponto inventivo transforma-se em padrão previsível, amortecendo o impacto emocional e reduzindo-se a uma textura sonora que, embora ainda bela em sua coesão estilística, cansa pelo excesso.

Encarnando um protagonista cuja jornada se entrelaça à ascensão profissional e às tensões sociais, Adrien Brody esculpe uma performance tão contida quanto uma estátua: precisa em seus contornos, mas fria na superfície. O espectador decifra a dor, mas não a internaliza, como se o personagem estivesse eternamente confinado atrás de paredes de cimento armado. Guy Pearce e Felicity Jones cumprem funções narrativas com a eficiência de colunas estruturais: Pearce, com sua postura hierárquica, e Jones, com uma fragilidade calculada, sustentam seus momentos, mas não os transcendem. Até mesmo as cenas de sexo são executadas com uma frieza que nega o caos do desejo, reduzindo-o a coreografias mecânicas — isso poderia ser uma crítica à baixa libido e à consequente condução da energia do indivíduo para a arte/trabalho, mas o diretor não realiza esse trajeto, de modo que os dois momentos íntimos e consensuais da película são patéticos, seja na intenção, seja na maneira como foram filmados.

Denunciando o preço do sonho americano, o longa analisa a ascensão e a queda de alguém preso entre a redenção pessoal e as exigências de um sistema que constrói esperança e desilusão — refletindo, em tese, as contradições históricas e culturais de imigrantes do século XX. Mas é aqui que desaba o prédio mal calculado. Pensamos na cena do estupro em Carrara: um golpe baixo narrativo. Não por ser brutal (o tema exige brutalidade), mas por ser narrativamente desprezável. A violência de classe e o abuso de poder já estavam firmados na história, portanto, inserir aquela sequência não criou ou revelou nada novo, apenas repisou o óbvio com algo infame. Como consequência, há a cena em que Erzsébet revela a verdade para a família Van Buren, um momento que não leva a lugar algum porque Corbet o reduz a pó, cortando a cena na hora de sua compensação, como se tivesse medo de encarar as consequências do que ele mesmo criou. E daí passamos para um epílogo de tom professoral, com uma estética fora de lugar e uma reticência que não é ambígua, é simplesmente preguiçosa. Parece que o filme, após horas cavando fissuras sociais, resolve tapar tudo com a pior argamassa do marcado.

A obra até tenta atravessar tempo e espaço com simbolismos, mas não passa de um esqueleto arquitetônico que se gaba de sua grandiosidade. Seus acertos estão lá: imponência visual, reflexões sobre poder, arquitetura, identidade, e um pequeno ensaio sobre contradições humanas. No entanto, seus vergalhões tortos chamam ainda mais atenção, começando pelo roteiro, que oscila entre querer ser um manifesto emocional e um tratado estético e social, que, infelizmente, perde o equilíbrio. As referências históricas e culturais, embora potentes (junto com a direção de arte), são enterradas sob camadas de didatismo (aquele epílogo, gente…) e o pior: parecem mais fascinadas por exibir suas próprias estruturas do que por dar-lhes sentido. O Brutalista prometia ser um edifício fílmico onde dor e reconstrução coexistiriam, mas preferiu ser um showroom de técnicas que pincelam momentos interessantes e nunca permite que avancem. O concreto brutalista não mostra um retrato das nossas contradições; apenas as repete. E quando a estrutura desmorona, restam entulhos de ideias: pedaços de blocos porosos erguidos sobre a mesma fragilidade que quiseram denunciar.

O Brutalista (The Brutalist) — EUA, Reino Unido, Canadá, 2024
Direção: Brady Corbet
Roteiro: Brady Corbet, Mona Fastvold
Elenco: Adrien Brody, Felicity Jones, Guy Pearce, Joe Alwyn, Raffey Cassidy, Stacy Martin, Isaach De Bankolé, Alessandro Nivola, Ariane Labed, Michael Epp, Emma Laird, Jonathan Hyde, Peter Polycarpou, Maria Sand, Salvatore Sansone, Zephan Hanson Amissah, Charlie Esoko
Duração: 214 minutos

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