“Por que você me pegou?
Porque eu ouço o seu coração solitário em todos os sussurros secretos do mundo.”
O cinema mágico de Steven Spielberg é uma de suas vertentes de abordagem para a sétima arte mais admiráveis. A vasta carreira do cineasta, contudo, também permite o fracasso ocasionalmente encontrar-se em meio à genialidade de sempre. O Bom Gigante Amigo possui alguns dos toques magistrais que o querido diretor conseguiu atribuir completamente a maravilhas, como E.T. – O Extraterreste e Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros. As cenas na cidade, dimensionando espaço e sombras, são inventivas. O diretor possibilita a existência de sequências psicodélicas, impulsionadas para o estrelato pela cinematografia impressionante de Janusz Kaminski. As cores pulsam. O controle da câmera é preciso, notando-se alguns planos mais longos e movimentações sagazes, investindo no nosso deslumbramento. Já dentro da toca do Bom Gigante Amigo, uma criatura que, teoricamente, deveria ser inimiga mortal de crianças, mas acaba criando vínculo com uma menina que é obrigado a sequestrar, diante do fato dela tê-lo visto, Steven Spielberg possui ao seu alcance uma criação de mundo, contrastado com a pequenez da garota sequestrada, fascinante – durante o momento da confecção de uma arma importante, nos encantamos. Os sonhos, personificados mesmo, são lindos, parte do trabalho dessa imensa criatura da literatura fantástica, criada pelo ainda maior Roald Dahl.
Nenhuma outra obra do diretor aparenta ser tão trivial quanto essa – uma decisão corajosa para um mundo insistindo em narrativas cheias de acontecimentos. Um mérito, porém, não justifica o gigantesco demérito da duração da fita, demasiadamente longa e, portanto, duramente cansativa. O grande ponto a seu desfavor, mesmo assim, não é o fato da projeção ser extensa – pelo qual nem é realmente -, mas do público não estar, em momento algum, verdadeiramente envolvido com ela, engajado na história que está sendo contada, durante todo esse tempo que será sentido pelo espectador, queira ou não. A narrativa, de fato, não é relevante, porque poderíamos nos encontrar investidos meramente na relação entre um personagem e outro, tendo que sobreviver ao perigo dos demais gigantes, verdadeiras ameaças a crianças. A simplicidade primeira permite a trivialidade do todo, que conta com a condução elegante de um cineasta mágico. Uma história um pouco maior, porém, existe. “Nós temos um plano”, clama a personagem. Steven Spielberg não dá atenção alguma a conclusão da obra. Caso, por algum momento, nos apegássemos à amizade construída entre uma mera garotinha e um gigante que, diferente dos demais, não devora crianças no almoço, O Bom Gigante Amigo poderia ser uma das grandes conquistas cinematográficas do diretor.
Onde podemos encontrar, portanto, uma salvação para uma experiência cinematográfica que não cativa? Uma ausência de cativamento, ao menos, em partes, porque, além das criações audiovisuais extraordinárias promovidas pela direção de Steven Spielberg, Mark Rylance, em sua individualidade, é uma grande figura mitológica, composta por computação gráfica, mas extrema sensibilidade humana. O Bom Gigante Amigo é naturalmente bondoso. As feições faciais exprimem delicadeza, afeto. O registro do público com ele, em empatia, é quase imediato. A qualidade da mistura do real com o irreal pode não ser das melhores em outras situações – o embate conclusivo é vergonhoso -, mas o fictício é um puro deleite, cheio de simpatia, muito em razão da ótima interpretação do ator. O encontro com a Rainha (Penelope Wilton) – em um desdobramento narrativo completamente aleatório, mas potencialmente charmoso – é a graciosidade em seu estado mais pleno, com as dificuldades na fala sendo um acompanhante – às vezes exagerado – delicioso de se aventurar por. Os olhos, caminhando para o âmbito dos efeitos visuais, são extremamente caprichados. Como, então, Steven Spielberg conseguiu distanciar o público completamente do seu longa-metragem, desmoronando uma realização que poderia resultar em um dos grandes épicos infantis?
A justificativa é simples: Sophie (Ruby Barnhill) não tem a menor presença em cena. Ao seu lado, o Bom Gigante Amigo é um ser imensamente adorável, enquanto ela é uma criança genérica. O texto é extremamente fraco em vista dos diálogos – o lançamento é póstumo para a roteirista Melissa Mathison, que faleceu em 2015, mas, em sua defesa, conseguiu acertar no pensamento de alguns segmentos com o Bom Gigante Amigo. Além disso, a garota não é dirigida muito bem, mostrando traços de personalidade, mas nunca nos convencendo deles. O relacionamento entre os dois amigos, dessa forma, é bastante dificultado, tornando toda a obra um conjunto enfadonho de momentos, em outro contexto, muito bons. As linhas de diálogos ficam mais piegas e escatologia é repelida integralmente. Quem pensou naquela cena cheia de flatulências, totalmente desencontrada? O espectador também passa a criticar certas ocasiões espirituosas, por pensar que elas não estão levando a lugar algum, entretanto, realmente não estão, pois a construção da amizade é vaga. Os pesares do gigante são sentidos apenas em relação ao passado – a decisão de não abandonar a protagonista é desconfiável. O filme, portanto, é desmontado quase que por completo em decorrência, basicamente, de uma única gigante complicação na execução. Quem mandou errar justamente na essência da sua obra, Spielberg?
O Bom Gigante Amigo (The BFG) – EUA, 2016
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Melissa Mathison
Elenco: Mark Rylance, Ruby Barnhill, Penelope Wilton, Jemaine Clement, Rebecca Hall, Rafe Spall, Bill Hader, Ólafur Darri Ólafsson
Duração: 117 min.