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Crítica | O Bígamo (1953)

Um homem entre duas mulheres.

por Fernando JG
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É um fenômeno muito raro no cinema em geral o momento em que o cineasta retira do filme a sua perspectiva a respeito da situação narrada e constrói no enredo uma espécie de campo-aberto para inúmeras discussões morais do que é certo e errado. Ideologicamente, são filmes que optam, como parte da própria retórica fílmica, por se apresentar de maneira neutra ao público. Obras assim, comumente, são aclamadas devido ao seu elevado poder de comoção e impessoalidade. Em outras palavras, são polêmicas categóricas em roteiros engenhosamente agudos. Para ficar mais claro, falo de filmes como o de Pedro Almodóvar que fez de Fale Com Ela um dos maiores enredos da história do cinema ao lançar o poder de julgamento para o público, fazendo de seu personagem imperfeito e humano uma vítima de seus desejos mais recônditos e imorais. 

Neste mesmo embalo, a corajosa Ida Lupino trabalha com mais um tema fora da caixa para o seu tempo (já não bastava falar de problemas como ser mãe solteira, abuso sexual e arrivismo familiar?), como está evidenciado no título do filme: a bigamia. Quisera eu, contudo, que o desenrolar dramático – que é um espelho da vida real, afinal, a arte é uma mimese da natureza – fosse simples. O público, ao esperar obviamente encontrar um homem que mantém uma vida dupla e que a determinada altura é descoberto, cai num enredo poeticamente melancólico com um estudo aprofundado a respeito da solidão e da culpa de um inconsciente que julga a si o tempo inteiro. O remorso é o pior dos julgamentos. 

De intriga simples e sem reviravoltas mirabolantes, recebemos o casal Harry Graham (Edmond O’Brien) e Eve (Joan Fontaine) no meio de um processo de adoção. Ela não pode ter filhos e ambos já estão na casa dos quarenta anos. Este é o momento perfeito para isso. Na entrevista, Graham mostra-se apreensivo com as inúmeras informações que o responsável pelo caso está coletando, o que levanta suspeita por parte do entrevistador (Edmund Gwenn), que parte em investigação do porque Graham está tão preocupado, afinal, é preciso saber da vida dos futuros pais da criança para que ela seja entregue a um lar decente e responsável. 

Ao procurar, não demora a descobrir que o rapaz viaja o mês inteiro a trabalho, mas quando menos se espera observamos, como num arroubo, a paralisante cena da descoberta. Alguém bate à porta, é Jordan, o responsável pelo processo de adoção, e sem aviso prévio um bebê começa a chorar e todo o ambiente fílmico é tomado por um silêncio gritante. A criança é do bígamo, mas com outra mulher, numa outra cidade. Tudo isso a que me reporto compõe os primeiros minutos de filme e o que segue então são imagens que vão explicar o que houve com a vida de Graham para que ele tivesse esta vida dupla. 

Trata-se, essencialmente, de um misto entre drama e noir. Há um toque de propriedade no trato do gênero cinematográfico, o que demonstra um aperfeiçoamento ímpar por parte da cineasta, que evolui de maneira inegável desde suas primeiras direções. O suspense está amparado num jogo de surpresas cênicas que acompanham imediatamente uma suspensão climática, isto é, o ato desencadeador do espanto acontece sempre na hora e no lugar exato e não poderia pensar em situações mais certeiras para que a diretora utilizasse do elemento noir. Diria que mesmo com poucas cenas dedicadas ao suspense ela supera, e muito, o seu filme de gênero propriamente noir: O Mundo Odeia-me. O drama é escrito com sensibilidade e delicadeza, de modo que a poeticidade do texto coloca luz sobre um sujeito desamparado e abandonado que, como humano imperfeito que é, sente o peso de uma rejeição não-falada, que é o afastamento de sua esposa. O roteiro poético lida o tempo inteiro com linhas traçadas a partir da subjetividade de um homem solitário e nunca deixa que isso escape da ideia total do filme. 

Assim, a trama evolui trazendo profundidade ao protagonista e sua trajetória de desilusões. O encontro com a que se tornará a outra esposa, Phyllis Martin (Ida Lupino), carrega doses de lirismo, paixão e melancolia. Nos parte o coração verdadeiramente porque nos passa a impressão de que Graham está agindo contra a sua natureza ao trair Eve. Ele não está satisfeito com o seu casamento, e não quer magoá-la, contudo, também não está contente com o desenrolar de sua vida dupla. Ele visivelmente não queria isso, mas a ação de um Destino parece ser mais potente do que suas forças individuais e piedade é afeto primordial purgado no público.

O enredo demonstra que não é uma situação simples e torna a trama complexa ao máximo através de extenso foco no personagem, estudando-o de modo primoroso. É a isso que chamamos de estudo de personagem: um olhar sincero e claro sobre o seu verso e reverso. Vamos acompanhando a batalha interna de Graham, mesmo sem o recurso da voice-off para dar vazão sentimental. Me agrada que o personagem não é frívolo, tampouco pueril e carrega na sua constituição de caráter um pouco do existencialismo que povoaria obras-primas do tipo Morangos Silvestres (Ingmar Bergman, 1957) e Trinta Anos Esta Noite (Louis Malle, 1963). 

Ida Lupino chega ao  seu ápice com O Bígamo. Estilo e narrativa caminham juntos num todo sob medida que encanta, suspende e nos deixa igualmente tristes pela irresolução de um personagem que, ambíguo, mostra-se infeliz, fraturado e engolindo um remorso à seco que o corrói a todo o tempo. A cineasta dirige a si mesma enquanto personagem e entrega uma atuação verdadeira, ao passo que Eva Graham, a esposa primeira, coloca-se estrategicamente distante da trama e pouco aparece: é um distanciamento proposital, afinal, ela está de certo modo afastada dele e o enlace amoroso parece estar partindo ao meio num casamento prestes a acabar, desenhando um letreiro simbólico que anuncia que os cônjuges viraram amigos e só. The Bigamist é, enfim, um baita de um drama psicológico e uma peça de ouro na filmografia da cineasta. 

O Bígamo (The Bigamist, EUA, 1953)
Direção: Ida Lupino
Roteiro: Collier Young
Elenco: Joan Fontaine, Ida Lupino, Edmund Gwenn, Edmond O’Brien, Kenneth Tobey, Jane Darwell, Peggy Maley, Lilian Fontaine
Duração: 80 min. 

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