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Crítica | O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues

Um mestre das rubricas e da atualidade constante.

por Leonardo Campos
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Em sua profícua trajetória de escrita, Nelson Rodrigues, como mencionado na análise de Bonitinha, Mas Ordinária, se comportou diante da prática dramatúrgica tal como os seus personagens: um ser humano tomado pela obsessão por determinados temas, constantemente trabalhados por um viés inovador, mesmo que algumas histórias possuam similaridades. Conhecido por suas abordagens costumeiramente controversas e instigantes, em O Beijo no Asfalto, o mestre das rubricas, da técnica e dos diálogos pungentes traz à tona questões densas sobre moralidade, hipocrisia e crise na estrutura familiar diante de um complexo tecido social lá na década de 1960, mas que parece refletir um Brasil ainda muito atual. Por meio das singularidades de seu estilo direto e incisivo, com diálogos ágeis e repletos de ironia, tendo em vista capturar as contradições da sociedade de sua época, ele nos entrega uma linguagem crua e desprovida de artificialidades dramáticas, escolhas que sempre conferiram autenticidade e impacto aos seus textos. Numa teia de complexidades diante das relações interpessoais em cena, Nelson Rodrigues tece diálogos que revelam a densidade dos conflitos emocionais de suas figuras ficcionais atormentadas pela quebra da rotina e posterior estabelecimento da angústia.

Publicada em 1961, O Beijo no Asfalto reflete uma temática amada por Nelson Rodrigues: as contradições da moralidade humana em uma trama que gira em torno de um incidente aparentemente simples. Um beijo entre um homem e um moribundo num dia qualquer, testemunhado por um repórter sensacionalista e transformado em manchete de jornal. Desse acontecimento, a peça mergulha em um emaranhado de situações psicologicamente caóticas, nos revelando o lado contraditório da nossa civilização. Um dos pontos nevrálgicos do texto é a hipocrisia enraizada na sociedade, evidenciada pela forma como as personagens lidam com o acontecimento do beijo e suas consequências. A figura do repórter é bastante emblemática nesse contexto, pois representa a manipulação da verdade em prol do sensacionalismo e do oportunismo. A sua presença simboliza não apenas a busca pelo escândalo e pela audiência, mas também a distorção da realidade em nome de interesses pessoais e políticos. Se olharmos para o Brasil contemporâneo, parece que a peça foi escrita “ontem”.

Arandir é o protagonista da história, um homem comum que se envolve em um escândalo ao beijar um homem moribundo no asfalto após um acidente. Situação adversa, carregada de tantos significados e interpretações, mas que impactam a vida de todos que gravitam em torno do cotidiano do protagonista, tais como Selminha, a esposa de Arandir, que passa a sofrer as consequências do escândalo junto com ele; Dona Matilde, a sogra de Arandir, também afetada pela situação; Aprígio, pai de Arandir, uma figura autoritária e moralista que se esbalda na situação para colocar pra fora os seus preconceitos arraigados; Amado Ribeiro, um cínico repórter sensacionalista que escreve conteúdos jornalísticos sobre o beijo presenciado e, com isso, potencializa a perseguição contra o protagonista; Delegado Cunha, um membro corrupto da polícia, figura que explora o ocorrido para dar vazão aos seus próprios interesses, além de Everaldo, chefe do protagonista, outra figura manipuladora que explora a situação para alcançar seus próprios interesses e Dália, uma personagem que representa a voz da rua e dos rumores populares, salvaguardas as devidas proporções comparativas, quase um membro do “coro”.

Em linhas gerais, o texto debate moralidade e hipocrisia social, pois a peça expõe as contradições da moralidade social, com o beijo de Arandir em outro homem moribundo sendo julgado de forma hipócrita pela sociedade, que rapidamente condena sem compreender o verdadeiro significado do ato de compaixão, adentrando no atualíssimo debate sobre homofobia e preconceito, haja vista a reação negativa ao beijo entre dois homens, acontecimento catalisador de momentos homofóbicos, explorados pelos personagens que convivem diretamente com Arandir e pela mídia e pelos indivíduos em benefício próprio, fortemente manipuladora. Na peça, Nelson Rodrigues critica fortemente a mídia, mostrando como os jornais distorcem os fatos para sensacionalismo diante de determinados eventos, para garantir a venda de mais exemplares, numa exploração contundente de tragédias pessoais para o entretenimento público.

O Beijo no Asfalto também aborda a corrupção dentro das instituições públicas, como a polícia e o judiciário, que se deixam influenciar pela mídia e pela opinião pública, em vez de buscarem a verdade e a justiça. A busca incessante por uma “verdade” que justifique os preconceitos existentes e a compulsão por encontrar um culpado, independentemente da realidade dos fatos, são elementos centrais na trama. Junto a isso, temos também a desagregação da família, pois a trama evidencia como a pressão social e as crises externas. Dividida em três atos, a peça apresenta uma meticulosa progressão narrativa, com momentos constantes de tensão e curva dramática sinuosa, para garantir a desejável catarse que nos mantém envolvidos do início ao fim, com reviravoltas inesperadas e revelações impactantes, recursos que potencializam a atemporalidade e relevância da temática ainda no contemporâneo.

Ademais, Nelson Rodrigues utiliza elementos simbólicos para enriquecer a narrativa e aprofundar as reflexões propostas pela peça. O beijo, que dá título à obra, revela-se como um símbolo ambíguo, carregado de significados que vão desde a pureza até a perversão. A presença recorrente do asfalto como cenário principal pode ser pensado como uma das tantas alegorias do texto sobre solidez e violência, contrastando com a fragilidade e a transitoriedade das relações de seus personagens, desenvolvidos com traços fortes nas nuances psicológicas. São criaturas que sofrem e fazem o outro sofrer, carregados de motivações ocultas e densos conflitos internos, muitos mascarados socialmente. Ainda muito provocativo, o dramaturgo entrega em O Beijo no Asfalto um de seus enredos mais fortes, com elementos técnicos cuidadosamente elaborados. Com isso, fica evidente que a genialidade de Nelson Rodrigues transcende as barreiras do tempo e do espaço, se tornando “imortal” por meio de suas obras que continuam a desafiar e provocar o público, explorando temas como moralidade, preconceito e a natureza dos julgamentos sociais. Se trazida para o contexto das famigeradas redes sociais, a peça ganha contornos ainda mais interessantes. Em grande parte, a atualidade da peça está em sua capacidade de dialogar com as nuances éticas e morais do mundo contemporâneo.

Ética, como já dito em ocasiões reflexivas anteriores, um conceito falido há eras. Junto a isso, a peça lança luz sobre a natureza contraditória do ser humano, capaz de gestos nobres e altruístas, mas também suscetível à corrupção, à mentira e à traição. A ambiguidade das personagens, suas motivações ocultas e suas máscaras sociais ecoam os dramas pessoais e coletivos que permeiam a existência contemporânea. Delineados pela dualidade, tais figuras ficcionais tornam a força do texto ainda maior, pois lido hoje, elas ecoam um mundo cada vez mais marcado por celeumas como a polarização ideológica, a desinformação e a intolerância, numa mensagem atemporal que ecoa como um alerta sobre a fragilidade da verdade, a manipulação da opinião pública e a urgência de se questionar as narrativas dominantes, em um texto mordaz, envolvente e tecnicamente bem construído, tecido por um grandioso dramaturgo brasileiro do século XX, conhecido por trazer inovações que impactaram profundamente o teatro nacional, haja vista os seus personagens intensos, as suas tramas complexas e uma abordagem contundente das relações sociais, numa obra que muitas vezes incorpora elementos do teatro expressionista e do teatro do absurdo, utilizando recursos como cenários simbólicos, personagens caricatos e situações paradoxais para criar um universo teatral único e perturbador.

O Beijo no Asfalto — Brasil, 1961
Autor: Nelson Rodrigues
Editora: Editora Nova Fronteira
Páginas: 160

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