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Crítica | O Beijo no Asfalto

por Michel Gutwilen
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Não é uma missão fácil escrever a crítica cinematográfica sobre O Beijo no Asfalto (1980), adaptação da peça teatral homônima de Nelson Rodrigues — que também virou filme em outras duas oportunidades: O Beijo (1964) e O Beijo no Asfalto (2018). Afinal, se o objetivo do texto é ser fiel a uma análise que trate o filme enquanto Cinema, é preciso se afastar dos comentários deslumbrados sobre a maravilhosa história criada pelo renomado escritor brasileiro, senão poderia se estar fazendo uma resenha da peça e não da obra audiovisual baseada nesta. Portanto, o objetivo aqui é pensar o modo como o diretor Bruno Barreto transformou o texto da peça, adaptado pelo roteiro de Doc Comparato, em linguagem cinematográfica.

Felizmente, já é possível tecer diversos comentários sobre a mise-en-scène pensada por Bruno Barreto logo na primeira sequência de O Beijo no Asfalto, que compreende o evento chave no qual a narrativa orbita em volta: um homem é atropelado e, prestes a morrer, é beijado por outro homem que passava, aparentemente sem motivo. O primeiro plano do filme localiza a câmera atrás da sirene do carro de polícia que está chegando para averiguar o ocorrido. Este objeto de cor vermelha, que emite um som incômodo e gira em rotação, está no centro do quadro e sua presença é extremamente agressiva. Trata-se de um prenúncio do papel que a polícia terá durante toda a história: impositiva, abusiva e sufocante. Posteriormente, quando o carro chega ao local do acidente, o que se vê é o momento posterior a ele, de modo que o espectador nunca vê o tão falado beijo, sendo sua ausência crucial para uma atmosfera de incerteza que é explorada ao longo de toda a narrativa quanto aos fatos ocorridos. 

Ao invés da morte e do beijo, Bruno Barreto volta sua câmera para os olhares das pessoas curiosas diante do acontecimento, o que novamente já antecipa uma outra temática crucial da obra. O Beijo no Asfalto não é exatamente sobre ter certeza se o beijo aconteceu ou não, se o protagonista é homossexual ou não, mas sobre a reação da sociedade. Assim, a verdade objetiva fica em segundo plano em detrimento do julgamento público, alimentado pela mídia sensacionalista e marcado por um ímpeto punitivista e de base conservadora. Inclusive, a história de Rodrigues guarda bastante similaridades com o filme americano O Mundo é Culpado (1950), da diretora Ida Lupino, que retrata o estupro sofrido por uma mulher noiva e como toda a sociedade passou a julgá-la, ainda que ela fosse vítima da situação.

Porém, é interessante que o filme não seja somente de base individualista, interessado apenas em explorar o sofrimento vivido pelo personagem, mas também em usar da situação para fazer um estudo social e revelar as próprias hipocrisias e imoralidades que perpassam por todos os personagens da história. Por isso, O Beijo no Asfalto é marcado por uma série de acontecimentos imorais envolvendo os temas da corrupção, do abuso sexual e do incesto. Ora, se todos esses elementos são tratados com uma certa naturalidade pelos personagens, enquanto a homossexualidade não é, evidentemente que há aqui um apontamento sobre a seletividade dos assuntos que a sociedade escolhe para promover ódio. 

Neste sentido, Barreto incorpora muito bem em sua mise-en-scéne o uso das sombras no interior da casa, principalmente nas cenas que envolvem os personagens conversando sobre o beijo, exteriorizando no cenário este clima de incerteza que perpassa todos os personagens e suas intenções, sempre nebulosas. Ao invés da frontalidade de encarar os acontecimentos, brinca-se propositalmente com o mistério. Por outro lado, se o ambiente e as conversas são nebulosas, a direção de atores vai em um sentido de explorar ao máximo uma veia caricatural e estereotipada dos atores, cujos personagens são representantes de suas classes (o policial agressivo, o jornalista sensacionalista, o pai de família conservador). A exceção fica por conta do protagonista Arandir, vivido por Ney Latorraca, cuja atuação em nenhum momento parece dar certeza quanto às dúvidas que tanto os outros personagens quanto à audiência possuem. Se ele é homossexual ou não, se o beijo foi platônico ou uma mera compaixão, a atuação nunca entrega e permeia no terreno da ambiguidade.

Por fim, é importante destacar a maneira como se filma a última cena de O Beijo no Asfalto  e como ela contrasta com a primeira. Enquanto em seu conteúdo ela fecha a história ciclicamente, além de evidenciar a farsa do personagem mais moralista, sua mise-en-scène vai no sentido de uma extrema frontalidade, diferente da ocultação do primeiro beijo. A maior tragédia da sociedade brasileira é a repressão dos seus sentimentos. 

O Beijo no Asfalto (Brasil, 1980)
Direção: Bruno Barreto
Roteiro: Doc Comparato
Elenco: Tarcísio Meira, Lídia Brondi, Daniel Filho, Ney Latorraca, Christiane Torloni, Oswaldo Loureiro, Thelma Reston, Nélson Caruso, Flávio São Thiago, Lícia Magna, Marcos Miranda
Duração: 80 mins.

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