Baseado no livro O Beco das Ilusões Perdidas (Nightmare Alley), de William Lindsay Gresham, sendo a segunda adaptação do material após o interessante filme noir de 1947, O Beco do Pesadelo, dirigido e co-escrito pelo fantástico Guillermo Del Toro, estrela Bradley Cooper como Stanton Carlisle, um vigarista tentando fugir do passado se juntando a uma feira itinerante, onde se torna assistente de Zeena (Toni Collette), uma vidente cujo ato é baseado em um código inventado com seu marido alcoólatra, Pete (David Strathairn). Eventualmente, Stan toma o código para si e inicia sua própria trajetória como mentalista e falso médium, junto da sua esposa Molly (Rooney Mara).
Tanto o romance de Gresham quanto o filme de 47 são marcados pela narrativa e estilo noir, algo que Del Toro carrega para seu longa. O cineasta mexicano, porém, tem muito mais habilidade em hipnotizar a audiência do que o diretor Edmund Goulding na primeira adaptação. Logo de cara, a cena de abertura mostra Stan escondendo um cadáver e incendiando uma casa, rapidamente indicando um passado misterioso, um protagonista ambíguo e o caráter simbólico da narrativa, todos elementos típicos de filmes noir, dentre outros que aparecem no restante da obra.
O incendiar da casa, aliás, é um momento representativo que percorre todo o filme através de inserções cuidadosas da montagem, às vezes de modo onírico, outros de memória, e interessantes figuras da chama em reverso e slowmotion, se prolongando como um trauma que assombra Stan e também como um indício da destruição que circula o anti-herói. A propósito, há outros momentos sugestivos visualmente inteligentes na obra, como quando Stan encontra um “selvagem” na casa de espelhos ou a sequência das cartas de tarô de Zeena, e até mesmo avisos de personagens ao redor de Stan. É uma descendência ao inferno e a narrativa passa o tempo todo nos contando isso, ora sutilmente ora objetivamente. Só nos resta acompanhar o arco de autodestruição do protagonista.
Para nos guiar por essa história, Del Toro e sua produção são magistrais na criação de uma atmosfera melancólica, trágica e cínica através de um nível de detalhe visual inigualável. A primeira metade do filme na feira itinerante é uma visão sórdida e suja da vida miserável na era da Depressão, misturados no mundo de aberrações circenses com a iluminação low-key e cheia de sombras ameaçadoras (este último elemento carregado em toda a fita). Famoso por suas fantasias, Del Toro tem muita facilidade na construção de universo do circo, apresentando atrações e personagens com um olhar macabro – existe um feto com um terceiro olho que é especialmente tenebroso e marcante. O autor também oferece um peculiar toque de pavor com horror corporal com seu “selvagem” (geek). Mesmo não dispondo do característico sobrenatural da sua filmografia, o cineasta traz o mais singular monstro de suas obras: o ser humano; em um pessimismo também típico de filmes noir.
A segunda metade do filme, com Stan e Molly fazendo apresentações em salas luxuosas para a elite americana, funciona como um contraste para o primeiro ato. O design de produção continua soberbo, largando a “beleza grotesca” do circo para focar na elegância fria da alta sociedade, dominada por seus interiores de art déco, mansões sob o frígido aspecto da alvura da neve, e os figurinos ostensivos das mulheres, indo do vermelho vibrante de Mara como um ponto de amor e inocência no meio das vestimentas escuras dos ricaços, em especial contraposição com as roupas sombrias da gélida Dra. Lilith Ritter (Cate Blanchett, em sua melhor performance de clássica femme fatale de filmes noir com seus gestos diabólicos, olhares ameaçadores e dissimulação perigosa).
Lilith Ritter é provavelmente a melhor personagem em termos de conflito narrativo com Stan, trazendo uma leve camada de psicanálise ao já intrigante estudo de personagem do protagonista sob a ótica da natureza humana, principalmente ambição e sucesso – e aos poucos o drama se enriquece com o desenrolar do trauma passado de Stan. Além disso, o jogo de poder e sedução entre os dois no consultório de Ritter geram algumas das melhores sequências do filme, com diálogos lascivos e ameaçadores bem-escritos e bem-atuados. Aliás, é preciso enaltecer a performance de Bradley Cooper, começando como um personagem mudo, mas cheio de nuances, nos minutos iniciais em silêncio do filme, até a transição para um charlatão cheio de lábia e carisma – notem como o ator vai mudando o tom de voz e a postura.
Se tenho alguma ressalva na obra, é como Del Toro desenvolve a trama no ato final. É uma obra de progressão cadenciada, sem dúvidas, o que eu não tenho nenhum problema. Na verdade, até prefiro a escolha pela queima lenta, afinal, é um filme de caráter simbólico e de suspense (por isso mais formal do que textual). No entanto, acho que Del Toro prolonga muito a história de Stan no circo (onde o cineasta claramente está mais confortável com a sua usual bizarrice), perdendo noção do ritmo na avantajada minutagem de 150 minutos, e consequentemente não requinta com o mesmo cuidado o mistério no segundo ato, em que, na minha opinião, algumas resoluções são corridas e algumas dinâmicas mal aproveitadas, principalmente com a Sra. Kimball (Mary Steenburgen), Ezra Grindle (Richard Jenkins) e até mesmo o desenvolvimento do drama matrimonial entre Stan e Molly.
O Beco da Ilusão às vezes parece um filme que flerta com o famoso “forma sobre substância”, mas acredito que o visual é a onde está a essência desta história. Del Toro e toda a sua produção detalhista e metódica criam um universo fascinante com uma atmosfera noir sedutora, nos apresentando uma fábula perversa em sua história cíclica. Desde a primeira cena, sabíamos do destino selado de Stan. Em um estudo de personagem cheio de cinismo e melancolia, nosso protagonista amoral e “fácil para os olhos” que enoja e simpatiza na mesma medida, termina o filme com uma cena aterrorizante. É um desfecho adequado para o homem corrupto? Ou é apenas a visão trágica de um menino que continuou buscando validação? Entre repulsa e empatia, temos um belíssimo e sombrio pesadelo humano.
O Beco do Pesadelo (Nightmare Alley) | EUA, 27 de janeiro de 2022
Direção: Guillermo del Toro
Roteiro: Guillermo del Toro, Kim Morgan (baseado no romance Nightmare Alley, de William Lindsay Gresham)
Elenco: Bradley Cooper, Cate Blanchett, Toni Collette, Willem Dafoe, Richard Jenkins, Rooney Mara, Ron Perlman, Mary Steenburgen, David Strathairn, Holt McCallany, Tim Blake Nelson, Paul Anderson, Jim Beaver, Peter MacNeill
Duração: 150 min.