Mais famosa obra de William Lindsay Gresham, O Beco das Ilusões Perdidas (ou, em tradução direta do título original, Beco do Pesadelo) foi concebido quando ele lutava na Guerra Civil Espanhola e conheceu um funcionário de um circo ou feira itinerante. Ao retornar aos EUA e durante seu trabalho na editoria de uma publicação sobre crimes verdadeiros, ele passou a escrever o romance que acabou sendo lançado em 1946 e imediatamente comprado para adaptação audiovisual que, sem perder tempo, veio logo no ano seguinte, sob o título O Beco das Almas Perdidas, com Tyrone Power como protagonista.
O livro, de atmosfera marcadamente noir, é a clássica história de ascensão e queda de uma pessoa ambiciosa, capaz de qualquer coisa para subir na vida e que funciona como uma alegoria condenatória da ganância, da soberba e da exploração dos mais fracos. O foco é quase que exclusivamente na jornada do protagonista, Stanton Carlisle, de jovem adulto a um homem maduro que começa a vida trabalhando em um circo itinerante de segunda categoria, às margens do sonho americano, ou seja, próximo o suficiente para vê-lo, mas ao mesmo tempo longe demais para ser alcançado.
Gresham não tem pressa e explora detalhadamente a vida de seu personagem que começa consideravelmente inocente, mas já demonstrando um viés egoísta e sorrateiro que é compassadamente desenvolvido na medida em que ele aprende e aperfeiçoa os truques das pessoas ao seu redor e revela-se como alguém muito capaz de “ler” suas vítimas de forma a começar a se tornar um médium vigarista, logo abandonando o circo para tentar golpes cada vez mais sofisticados e complexos. A cada novo patamar que Carlisle chega, mais ambicioso ele se torna, jamais contentando-se com o que já conseguiu, com o autor também aproveitando para incrementar seu passado, seja o relativamente recente, com um evento importante e trágico logo no começo do romance, mas indo bem mais para trás, com o vigarista ainda criança lidando com seu pai, um ministro de igreja.
A alegoria de Gresham é clara, pois ele usa a ambição de uma pessoa sem meios que deseja galgar a montanha da ascensão social como uma forma de refletir a ambição dos abastados, daqueles que já estão no topo desta mesma montanha, mas que não têm intenção alguma de parar a escalada. Carlisle é o homem comum que, por mais torpe que possa ser, é mais identificável, mais palatável, mais identificável pela grande maioria das pessoas e vê-lo enganar os mais ricos parece até justiça social. No entanto, esse é o raciocínio de superfície apenas. Correto, sem dúvida, mas pouco ousado para o que o autor realmente pretende estudar.
Apesar de ser seu romance de estreia, O Beco das Ilusões Perdidas é inegavelmente uma obra talvez tão ambiciosa quanto seu protagonista. A jornada é sem dúvida conhecida, com uma estrutura muito repetida antes e depois da publicação do livro, mas Gresham imprime sofisticação à narrativa ao primeiro prender-se quase que exclusivamente ao ponto de vista de Carlisle e, depois, ao criar uma obra que é um estudo psicológico de um personagem fundamentalmente quebrado, que perde de vez seus freios morais logo no início da obra e aproveita ao máximo essa sua aparente liberdade para mudar sua sorte ou, talvez melhor dizendo, fazer sua sorte. É uma Barganha Faustiana que Carlisle faz consigo mesmo, cobrando exatamente o mesmo preço do pacto mítico.
Mas a sofisticação de Gresham está, também, em sua construção gramatical e vocabulário, o que separa em muito essa sua obra de outras do mesmo naipe por volta da mesma época. A ascensão de Carlisle, primeiro com a ajuda inocente de Molly, que ele leva do circo original e, depois, com a ajuda consciente (ou mais do que só ajuda) da psicóloga Lilith Ritter, é acompanhada pela evolução da estrutura de frases, com o vigarista júnior ainda tateando no escuro e sendo, em essência, ele mesmo, com vocabulário mais vulgar logo abrindo espaço para um novo Carlisle, agora reverendo (como o pai, aliás, já que essa simetria é importante), um homem sofisticado, capaz de transitar pela alta sociedade sem soluços. Essa metamorfose é cuidadosa e, mais do que isso, crível do começo ao fim, com Gresham usando os truques usados por Carlisle para convencer os ricos crédulos de qualquer coisa que ele quiser como uma maneira de, por um lado, prender a atenção do leitor pela curiosidade natural que algo assim incita e, por outro, servir como uma crítica indireta – mas não tanto assim – às religiões organizadas e suas promessas de maná divino sem muito esforço além de uma “pequena contribuição”.
O Beco das Ilusões Perdidas é uma obra suja e pérfida, portanto, que usa um recorte específico de ambição desmedida com fins que justificam os meios para jogar uma rede ampla que captura situações semelhantes do cotidiano da época e também de hoje em dia que podemos com bastante facilidade apontar o dedo ao nosso redor. E esse talvez seja o maior pesadelo que o romance evoca, o de saber que esse dedo, inclusive, pode apontar para nós mesmos sem que sequer percebamos o porquê. Acordar dele é que é o problema, mas Gresham nos oferece um poderoso serviço de despertador tão atual hoje quanto na década de 40.
O Beco das Ilusões Perdidas (Nightmare Alley – EUA, 1946)
Autor: William Lindsay Gresham
Editora original: Rinehart & Company
Data original de publicação: 1946
Editora no Brasil: Editora Planeta
Data de publicação no Brasil: 1º de novembro de 2021
Tradução: Flávia Souto Maior
Páginas: 304