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Crítica | O Barulho da Noite

Inocência do olhar, dor da realidade.

por Frederico Franco
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Nada poderia dar errado, visto o início do filme. Uma pacata família no interior do Tocantins, composta por Sônia, a mãe, Agenor, o pai, e as duas filhas, Maria Luiza e Ritinha. Desde o princípio da obra, um detalhe é salientado pela direção: a focalização parece dedicada a nos colocar no ponto de vista de Maria Luiz. É ela quem percebe, desde o início, que algo ruim está prestes a acontecer. Em relação ao seu pai, tudo é leve, tudo é motivo de um riso solto, despreocupado. A mãe, por outro lado, parece distante da família, sempre mal humorada e, repentinamente, muito dura com as crianças. A chegada de um novo elemento abala ainda mais a vida de todos ali. Um suposto sobrinho de Agenor, chamado Athayde, chega na casa da família para auxiliar na colheita enquanto o pai sai em missão religiosa. Maria Luiza, como sempre, é observadora e, sobretudo, silenciosa; sua voz quase não é ouvida, mas a atuação de Alicia Santana, é bárbara: entrega uma potência corporal que vale mais do que qualquer texto.

A conexão das meninas com o pai é profunda, marcada pela delicadeza e pela ternura entre os três – com Maria Luiza ainda é mais especial. Quando a primogênita descobre que sua mãe e Athayde podem, supostamente, estarem tendo um caso amoroso, a garota fica mais distante e agressiva perante a mãe. E Sônia devolve a mesma atitude para a filha. Um conflito está instaurado. A criança, dessa forma, perde uma parte de sua inocência ao perceber que sua família não é perfeita e que todos estão sujeitos a falhas. Maria Luiza fica mais grudada ainda ao seu pai. Antes da viagem de Agenor, a criança tenta de todas as formas convencer ele a ficar; ela não diz o porquê, mas seu olhar apavorado coloca uma dúvida na cabeça do patriarca. Sem Agenor em casa, Maria Luiza fica mais revoltada, desobedecendo a mãe e não aceitando Athayde enquanto figura paterna aparentemente temporária. Sônia e sua filha passam o tempo todo se confrontando. O jogo de campo e contracampo, aqui, é perfeito: a criança, enquadrada como oprimida, a mãe, por outro lado, muitas vezes em contra plongée, é mostrada como dona do poder da cena. Tendo as duas separadas, os antagonismos são finalmente posicionados: mãe versus filha.

Uma particularidade da encenação construída por Eva Pereira é modular a consciência das filhas e da mãe através da imagem. Enquanto as crianças são apresentadas com leveza, com uma câmera mais solta, a mãe é mostrada como extremo oposto: a câmera, em close, desfocando seu redor, isola a mãe do resto do mundo, está presa dentro de sua própria culpa, afogada em suas mentiras enquanto tenta simular normalidade para suas filhas. Engessada, Sônia nunca parece confortável. As próprias cenas de sexo entre ela e Athayde são marcadas por um estranho desconforto no espectador. Os dois parecem não saber exatamente o que fazer; é tudo muito rápido, enxergado por uma fresta. Talvez, esteja simulando a própria visão de Maria Luiza: confusa, chocada, sem compreender o que está acontecendo. Mas, ela sabe que é algo errado, algo que surge para colocar sua família em total queda livre. O inevitável acontece: Agenor descobre o caso entre Sônia e Athayde e expulsa o homem de sua casa. O que não se esperava é que a mulher e seu amante organizassem um plano de assassinar Agenor. A família, agora, se desfez. Maria Luiza e Ritinha, ainda com um resto de inocência, acreditam na volta do pai, ainda nutrem esperanças que ele irá voltar e se mudar para outro lugar apenas com as crianças. 

Sônia, agora ao lado de Athayde, construiu um novo esquema de família. Maria Luiza, quieta porém pronta para o conflito, não aceita isso e passa a confrontar o novo patriarca. Ele, no entanto, começa a apresentar um comportamento cada vez mais agressivo, seja com as meninas ou com a mãe. As três, juntas, agora compartilham de um mesmo sentimento: medo. Maria, Ritinha e Sônia, agora, parecem mais unidas do que nunca. O que parecia que seria um sonho, se tornou um grande pesadelo. O personagem de Athayde, antes visto com certa indiferença e um quê de mistério, ganha novos contornos: é um ser movido pelo ódio, pelo mal. É um monstro, sempre atuando nas sombras da noite. Abuso físico e psicológico se tornam regra do cotidiano da família. O ápice dessa agressividade é o abuso sexual sofrido por Maria Luiza – a sequência não é mostrada, mas sugerida. Aqui, ela perde toda sua inocência: seu olhar, transformado em opaco, não aparenta aquela vitalidade antes apresentada.

O medo toma conta de todas as mulheres da casa. Nenhuma está segura perante o monstro. Estamos em um filme de terror sufocante, em que cada respiro dos personagens é um ato de sobrevivência. Athayde, sempre visto nas sombras, é construído por uma atuação visceral de Patrick Sampaio, que entrega um olhar de pura perversidade perante as três mulheres. O Barulho da Noite é um drama que é, sobretudo, tão potente quanto um documentário no que diz respeito ao compromisso com a realidade. Dor, silenciamento e abuso: as próprias cartelas exibidas ao fim do filme lembram o espectador que, aquilo que vimos em tela, acontece diariamente, inclusive enquanto o filme estava sendo exibido. O filme de terror, sendo assim, não está nada distante da realidade vivida no Brasil.

O Barulho da Noite – Brasil, 2023
Direção: Eva Pereira
Roteiro: Eva Pereira
Elenco: Marcos Palmeira, Emanuelle Araújo, Alicia Santana, Anne Alice Dias, Patrick Sampaio, Tonico Pereira, Mercês Campelo
Duração: 97 min.

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