A jornada de Harlan Draka e seus companheiros pelo Arizona, narrada neste arco que reúne as edições O Bando dos Mortos-Vivos e Arizona Killers, desvia-se (mais uma vez) de forma muito interessante do cenário predominantemente europeu da série Dampyr. Ao longo desses dois volumes, Mauro Boselli e Maurizio Colombo entregam uma história que mistura um mistério de zumbis diabolicamente reencarnados em atores, com ação e reflexões culturais; mesclando o weird western às já conhecidas nuances sobrenaturais da série. Neste cenário de faroeste, o confronto não se limita às forças malignas: ele abrange também o peso de um passado turbulento e o preconceito contra povos nativos americanos, ampliando os horizontes do universo da saga e oferecendo um desafio singular para o filho do vampiro e seus amigos.
O deserto traz uma mudança visual interessante, em termos de palco de ação tradicional em Dampyr, fazendo Harlan, Tesla e Kurjak enfrentar um desafio que vai além da habitual caça aos Mestres da Noite: a maldição de mortos-vivos racistas e cruéis, que renascem como atores de espetáculos do Velho Oeste. Esse conceito, por si só, já sustenta uma narrativa que nos engaja, unindo o horror característico da série com a atmosfera singular do faroeste. Além disso, estabelece uma ponte narrativa com questões históricas delicadas, como o genocídio indígena e o “embranquecimento comportamental” das novas gerações de nativos — um distanciamento de suas raízes que, por vezes, reflete a reprodução dos crimes civilizatórios dos caras-pálidas.
O roteiro explora a luta entre tradição e modernidade, ao passo que abre novas possibilidades de vida para alguns personagens. Os antagonistas, presos ao ódio de um passado sangrento (que tentam repetir no presente), também simbolizam a resistência violenta ao progresso. Já os protagonistas, apesar de não serem representantes diretos de uma nova era, funcionam como agentes de mudança em um território que ainda carrega cicatrizes históricas. Em algum momento, até magia apache e exorcismo se fundem contra os zumbis, num sincretismo de fé combativa e integração contra um inimigo em comum que é muito bacana ver. A propósito desse ambiente de reserva indígena e presença de uma polícia e um conselho nativos, me lembrei constantemente de Saguaro, durante a leitura, outra baita série da Bonelli.
Nicola Genzianella em sua quinta contribuição para a série (iniciada em Das Trevas), complementa o roteiro com quadros que capturam a tensão e a adrenalina da trama numa gama caprichada de movimentos e traços ágeis que dão máxima vida às cenas de tiroteios e perseguições, fazendo o leitor se sentir imerso no caos das balas cortando o vento, ou na urgência das fugas desesperadas pelas pequenas vilas e cidades do deserto, seja a cavalo, de carro ou mesmo a pé. Os ângulos dos atiradores e as esquivas do alvos também são muito bem retratadas, assim como as inúmeras cenas de violência que o artista desenha para reforçar o terrível avanço dos reencarnados diabólicos até o seu último alvo: a reserva indígena.
Ali pelo fim do arco, temos o nosso principal calcanhar de Aquiles da aventura, com diálogos num tom que destoa negativamente do restante da narrativa. A condescendência do texto com suas decisões enfraquece o impacto dramático das consequências imediatas da vitória, parecendo simplificar os conflitos mais densos que o texto construiu. Além disso, a solução encontrada para derrotar os vilões, embora tenha conseguido o seu objetivo, não parece fazer jus ao calibre dos vilões, e soa, sim, como um Deus Ex Machina. O bom é que essas falhas não comprometem o todo, funcionando mais como tropeços que conseguimos adequar relativamente bem, se os compararmos à qualidade do restante do texto.
Aqui, Boselli e Colombo reafirmam a flexibilidade narrativa da série ao explorar as possibilidades do weird western e mostrar que ainda há muito a ser visitado e abordado no universo de Dampyr. É um arco em duas edições que diverte, provoca reflexões e expande o repertório sobrenatural dos caçadores de vampiros e outros horrores noturnos e diurnos — tudo isso com o charme de um duelo ao Sol e acordos moralmente complexos diante da lei dos homens e de Deus; só para não perder de todo o hábito.
Local de ação: Arizona (EUA)
Personagens principais: Harlan Draka, Tesla, Emil Kurjak
Dampyr – Vols. 28 e 29: O Bando dos Mortos-Vivos e Arizona Killers (La banda dei morti viventi / Arizona killers) — Itália, julho e agosto de 2002
Roteiro: Mauro Boselli, Maurizio Colombo
Arte: Nicola Genzianella
Capa: Enea Riboldi
No Brasil: Editora 85 (fevereiro de 2022)
Tradução: Júlio Schneider
100 páginas