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Crítica | O Atalante

por Luiz Santiago
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SPOILERS!

Depois de Aurora (F.W. Murnau, 1927), o verdadeiro filme sobre o relacionamento de um casal, ainda antes do cinema moderno, é O Atalante (1934), quarta e última obra de Jean Vigo. O filme surgiu em tempos de adequação do cinema francês ao advento do som e consequentemente à proliferação de obras que beiravam os dramas literários. As vanguardas, que até o final dos anos 20 jorravam películas para as grandes telas, viam-se em sua fase decadente. Apenas René Clair (em suas cáusticas comédias musicais, onde criticava a sociedade francesa), e Jean Renoir, iam avante com um cinema fora dos padrões que então se convencionalizava. E foi em Renoir, mais precisamente em seu filme Boudou Salvo das Águas (1932), que Jean Vigo baseou-se para adaptar um roteiro já escrito a uma realidade que ele queria trazer às telas numa linha que perpassasse o social, o poético e o surrealista. Assim nasceu O Atalante, obra que ainda traz dois atores de Boudou…, os excelentes Michel Simon e Jean Dasté.

Podemos dividir O Atalante em três grandes blocos de ação: casamento, convivência a dois, e fuga¹. No primeiro, Jean e Juliette casam-se e são acompanhados até o barco que dá nome ao filme por um cortejo que mais parece fúnebre do que matrimonial. No segundo, o mais longo de todos atos, a relação entre o jovem casal é exposta em diversas tonalidades dramáticas pelo diretor. No terceiro, a fuga e o regresso da esposa encerram a negação da realidade e o conformismo do cotidiano quase estático da vida no barco, mas além disso, também nos trazem a visão de um aprendizado, do fim de um processo de construção do amor.

Os sinos e a música elementar de Maurice Jaubert abrem o filme com a ausência dos protagonistas. Já o uso irregular dos planos nos dão a percepção clara do espaço cênico que é a pequena vila. Toda a sequência é mostrada em duas narrativas, editadas paralelamente: a caminhada dos noivos de braços dados rumo ao cais e os últimos preparativos do Imediato e do Ajudante do barco para impressionar a noiva. O realismo poético que transborda das cenas ajuda a criar a atmosfera que se dará dentro da embarcação, quando a viagem já houver começado — viagem esta que pode ser tanto a do barco pelos canais de Paris, quanto a do casal em direção aos sentimentos deles mesmos.

O interior do Atalante é um ambiente claustrofóbico e abarrotado de objetos — fica clara a relação com o passado, mas aqui, ele é tão insignificante ou tão traumático e exótico que só é lembrado por père Jules, o personagem de Michel Simon, em uma conversa informal e muito rápida. Juliette, então, passa a conviver com os muitos gatos que o Imediato cria, as suas recordações de viagens pelo mundo, a desorganização espacial do lugar e o desprendimento que ainda resta da alma de solteiro em Jean. Há tanto uma dificuldade de diálogo quanto de adaptação entre o casal: cada um sente em relação ao outro a ameaça de sua individualidade.

Como uma espécie de crônica de uma viagem Vigo nos apresenta pequenos “pedaços de tempo” do dia a dia no barco. Dos afazeres tipicamente domésticos às brigas entre todas as personagens (a única exceção é o garoto, cuja adolescência não é afetada pelas preocupações dos adultos), temos a colocação das personalidades fortes e o choque entre elas. A câmera vasculha o barco, filma a convivência no apertado interior e contrasta o que vê com os planos gerais exteriores, onde a liberdade do mundo serve como fuga para todos — sempre que há um grande aborrecimento ou um forte desejo de algo, a saída do barco para a terra firme é a única coisa que os protagonistas pensam em fazer, já que não podem realizar o que de fato querem. Todos saem do Atalante para a cidade em busca e alguma coisa.

Quando Juliette e Jules resolvem fazer esse caminho de busca juntos, o resultado foge ao controle dos dois. Um camelô (interpretado pelo cínico Gilles Margaritis) flerta com a ingênua Juliette e incita ainda mais na jovem o afã pelas novidades da cidade. Mas se nessa longa sequência o roteiro e as situações encantam, o mesmo não acontece com a montagem, que descamba em planos atropelados e pequenas sequências tão díspares que fazem os saltos cênicos dos primeiros minutos do filme parecerem um simples treinamento. Contudo, Vigo retorna à normalidade narrativa logo que o casal volta para o barco e em alguns minutos, entramos na fase final do filme, quando Juliette, imaginando que a cidade pode oferecer-lhe as mais belas coisas que ela já sonhou, foge, em busca daquilo que nem sabe. O resultado é um encontro da moça com a sociedade suburbana de Paris, muito diferente da moda narrada no rádio ou das vitrines cheias de colares e joias.

A Paris que Juliette conhece não tem emprego, forma grandes filas nos portões das fábricas e sente fome… A própria população da cidade está imersa em seus afazeres e parece não perceber a angústia da transeunte que olha para todos os lados procurando uma saída. Juliette sente-se mais sufocada na cidade do que no barco. O amor pelo esposo, que ela não imaginava ser tão grande, dá indícios de sua dimensão. Do mesmo modo, o desesperançado Jean mergulha em uma tremenda depressão. Uma sequência onírica e de cunho surrealista mostra a ligação entre o casal, um imaginando o outro com intensidade masturbatória. Então vem o final feliz, mas isso parece não tranquilizar o espectador. Por toda a sequência de fatos vistos durante o filme não temos muita certeza sobre o futuro do casal, mas, momentos antes do corte definitivo, tudo parece bem.

Jean Vigo manipula a câmera e joga com as diferentes linguagens técnicas e correntes. Planos em plongé, sobreposição de imagens, aceleração de película e câmera lenta também são recursos utilizados no filme. O amor e seu longo processo de entender ou perceber a si mesmo é filmado com um lirismo social levado ao campo do surrealismo. A força desse amor que se percebe, toma as cenas finais da obra. O Atalante prossegue em meio todas as dificuldades, assim como a vida do casal protagonista e os dois ajudantes do barco. Uma família plasmada como se fosse espelho da sociedade. A sutileza e a crueza da vida navegam sobre as lentes desse último filme de Jean Vigo, falecido antes mesmo de finalizar a obra, mas que legou ao mundo uma realização única, composta daquilo que faz a diferença para todos nós, aqueles a quem temos amor.

1 – Lembra-me os títulos dados por Truffaut aos seus filmes sobre a fase adulta de Antoine Doinel: Beijos Proibidos (1962), Domicílio Conjugal (1968) e O Amor em Fuga (1970).

O Atalante (L’Atalante, França, 1934)
Direção: Jean Vigo
Roteiro: Jean Guinée, Albert Riéra e Jean Vigo
Elenco: Jean Dasté, Dita Parlo, Michel Simon, Gilles Margaritis, Louis Lefebvre, Maurice Gilles, Raphaël Diligent
Duração: 89min.

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