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Crítica | O Astronauta (2024)

Olhando o espaço exterior para analisar o espaço interior.

por Ritter Fan
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Na ótima série Falando a Real, o terapeuta Jimmy Laird, vivido por Jason Segel, que sofre pela perda da esposa, tem uma epifania e decide estilhaçar um dos mais importantes mandamentos de sua profissão, pegando atalhos para ajudar seus pacientes. No lugar de ser o facilitador para que seus clientes cheguem às suas próprias conclusões sobre suas respectivas vidas, ele passar a dizer exatamente o que eles têm que fazer, o que, claro, cria toda sorte de problemas para além do dilema profissional que ele precisa enfrentar. Em outras palavras, em sua sofreguidão por resultados imediatos, o psicólogo afasta o espaço e o tempo para reflexão, substituindo-os por explicações, por instruções específicas.

E foi isso que senti ao final de O Astronauta, a mais recente obra de ficção científica de caráter filosófico existencial que usa a solidão do cosmos para mergulhar na psiquê humana, opondo espaço exterior ao espaço interior com o objetivo de estudar seu protagonista, o astronauta tcheco Jakub Procházka (Adam Sandler) que há seis meses viaja sozinho em direção a uma nebulosa que aparecera misteriosamente para colorir o céu da Terra quatro anos antes. O roteiro de Colby Day, baseado no festejado romance Spaceman of Bohemia que Jaroslav Kalfař publicou em 2017 e que, no Brasil, teve o título traduzido para o que o Netflix acabou usando também para o filme, é, basicamente, o que Jimmy Laird faz na série que mencionei: ele defenestra a contemplação e parte logo para a solução, ou melhor, para explicar e racionalizar os problemas pelos quais Jakub passa. É a mastigação daquilo que o espectador deveria concluir sozinho, o que acaba subestimando a premissa da narrativa e fazendo do longa uma obra que tem apenas o verniz de complexidade que mal consegue esconder seu didatismo, sua insistência em pegar na mão do espectador para explicar aquilo que ele deveria sentir e, lógico, concluir por si mesmo.

Mas isso, infelizmente, não é novidade alguma em Hollywood. Alguns podem achar que é sinal dos tempos modernos, mas esse tipo de narrativa supostamente complexa que não resiste em tornar tudo didático é algo que existe desde que o Cinema existe. As obras de ficção científica com esse contorno que têm sucesso em sua empreitada são, apenas, as exceções que confirmam a regra, exceções essas que vão desde 2001 – Uma Odisseia no Espaço e Solaris até os recentes A Chegada e Ad Astra: Rumo às Estrelas. E o que mais decepciona é que O Astronauta tinha potencial para ser algo minimamente desafiador, mesmo que talvez dificilmente conseguisse alcançar a qualidade dos exemplos citados. Por outro lado, felizmente, o filme capitaneado por Johan Renck (em seu primeiro longa) tem algumas ótimas qualidades que, se não chegam a redimi-lo completamente, pelo menos não tornam a experiência completamente vazia e frustrante.

A primeira delas é seu elenco. Adam Sandler, que já mostrou outras vezes que, quando sai de sua bolha cômica e aventura-se pelo drama costuma acertar em cheio, pode orgulhar-se muito de sua performance aqui. Unindo o desvario psicológico de seu Barry Egan em Embriagado de Amor com a intensidade desnorteadora de seu Howard Ratner em Joias Brutas, o ator constrói um personagem atordoado, esgotado, destruído pela solidão reflexiva que vive por tanto tempo e que abre espaço para ele reestudar toda sua vida, especialmente seu relacionamento com sua esposa grávida Lenka (Carey Mulligan). Com um trabalho excelente de maquiagem que imediatamente estabelece seu estado de espírito, Sandler entrega-se completamente a seu ingrato papel de um homem depressivo que se recusa a enxergar sua própria realidade. Mulligan, por sua vez, é Mulligan, claro. Dificilmente essa atriz erra em seus trabalhos e, aqui, mesmo que a presença de sua Lenka seja ancilar, funcionando mais como um contraponto (um tanto quanto didático) a Jakub, ela mais uma vez acerta em cheio em sua abordagem melancólica de uma mulher que sempre procurou entender o marido, sem que a recíproca fosse verdadeira.

Conectando os personagens, há o aracnídeo alienígena que acaba sendo batizado de Hanuš que tem um design que é ao mesmo tempo assustador e doce e um CGI de qualidade e a voz suave de Paul Dano para trazê-lo à vida. Dano cumpre muito bem sua função, assim como a equipe de computação gráfica que tem apenas os vários olhos da “aranha” para trabalhar emoções, mas o personagem em si é, talvez, sintomático do problema do longa que abordei mais acima: Hanuš é, quase que literalmente, o terapeuta afobado que explica os sentimentos e que impede seu paciente de tê-los e interpretá-los. E o roteiro até começa bem quando o bicho chega do nada na nave de Jakub, mas, na medida em que a trama avança e ele se torna falastrão até não poder mais, sua função passa a ser a de “explicador” e não de “facilitador”.

Outro aspecto que vale ser destacado é o design de produção. Falo, mais especificamente, do interior do foguete que Jakub pilota e que me lembrou o de High Life, aliás outra ficção científica recente de cunho existencial e filosófico que é uma exceção à regra. A desordem, o caos e a humanidade do interior da nave quase a transforma em um personagem, algo que é amplificado pelo “sugador” do vaso sanitário constantemente com defeito que metaforicamente impede Jakub de ter um sono sossegado. Não é, sob qualquer aspecto, uma nave funcional (aliás, a tecnologia no filme é acertadamente irrelevante), mas sim uma extrapolação da mente do protagonista em constante tumulto, em um estado de permanente melancolia e descaso que o consome completamente. Curiosamente, o cuidado em fazer a nave dessa forma mostra que talvez houvesse alguma intenção inicial de deixar o espectador pensar sozinho, plano esse que deve ter sido descartado completamente logo em seguida para evitar acusações de “hermetismo” ou outras besteiras preguiçosas do tipo.

A mais nova incursão de Adam Sandler pelo drama poderia ter sido uma ótima obra de ficção científica introspectiva, mas, para além do elenco afiado, o cuidadoso CGI e o fascinante interior da nave do protagonista, tudo o que o filme consegue ser é um exemplo clássico de potencial desperdiçado por mandamentos hollywoodianos na linha do “não vamos complicar para não afastar o público”. Com isso, O Astronauta fica à deriva no espaço, não orbitando nada que faça do longa algo especial e realmente desafiador, quase como um professor de olheiras profundas que olha para seus alunos e fala exatamente o que já está escrito na lousa.

O Astronauta (Spaceman – EUA/República Tcheca, 1º de março de 2024)
Direção: Johan Renck
Roteiro: Colby Day (baseado em romance de Jaroslav Kalfar)
Elenco: Adam Sandler, Carey Mulligan, Paul Dano, Kunal Nayyar, Isabella Rossellini, Lena Olin
Duração: 107 min.

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