O Assassino (Le Tueur, no original) é uma HQ francesa escrita por Matz (nom de plume de Alexis Nolent) e desenhada por Luc Jacamon que, em sua primeira série, teve 13 álbuns publicados entre 1998 e 2014 (seus títulos e datas de publicação originais estão na ficha técnica ao final da presente crítica), com o maior intervalo entre eles tendo sido os quatro anos entre 2003 e 2007 que marcaram o intervalo do Ciclo 1 para o Ciclo 2, conforme nomenclaturada usada por lá e que equivale a arcos – ou grandes arcos narrativos – sobre a jornada do assassino cujo nome real o leitor só conhece em uma breve sequência lá pela metade da história macro. É uma narrativa essencialmente pessimista sobre a Humanidade, seja em tempos atuais quando a ação se passa, seja no passado por diversas vezes mencionado ou até mostrado ao longo da progressão da história.
Quando escrevi acima “primeira série”, quero apenas dizer que, em 2020, Jacamon e Matz, certamente em razão do início da produção do filme de David Fincher adaptando a obra, retornaram ao personagem em uma série subtitulada Assuntos de Estados, composta por quatro álbuns até 2022. Essa segunda série de O Assassino não faz parte da presente análise, somente a primeira que, como mencionei, é composta de 13 álbuns de capa dura e papel de alta gramatura no estilo das publicações de quadrinhos na Europa, cada um de 56 páginas. Em relação aos ciclos ou arcos, os cinco primeiros álbuns compõem o primeiro, com os cinco seguintes o segundo e os três últimos formando uma espécie de epílogo alongado.
O primeiro ciclo estabelece a base narrativa do protagonista, caracterizado como um solitário assassino de aluguel francês experiente e muito eficiente que se encontra fazendo uma tocaia de vários dias na espera de seu mais recente alvo. Durante sua espera entediante, o roteiro se vale de balões de pensamento – ou de narração, o que preferirem – para extensivamente lidar com a filosofia da matador. O uso dessa narração, vale dizer, é a marca central da narrativa de Matz, que está constantemente muito mais focado em fazer citações de escritores e pensadores de diversas épocas e de mostrar a violência que basicamente construiu o mundo moderno, do que em contar uma história intrincada. O pontapé inicial para a ação é quando a missão do assassino quase dá errada, desencadeando uma série de outros eventos que o leva a trabalhar para um cartel de drogas colombiano, estabelecendo amizade com o sobrinho do chefão.
O mote central do primeiro ciclo, portanto, é muito calmamente estabelecer o protagonista como esse assassino com maneira de atuar já sedimentada que, quando pode, recolhe-se em sua casa na praia completamente desabitada na costa da Venezuela onde vive com uma nativa em uma espécie de paraíso intocado e, não muito tempo depois, mudar seu status quo e seu modus operandi com a entrada do referido cartel e Mariano, que se torna seu amigo e, de certa forma, ao mesmo tempo chefe. Ao longo desse ciclo inicial, o leque de opções do assassino vai aumentando e suas missões passam a ganhar outras conotações, ainda que sua frieza se mantenha intacta, assim como sua incessante necessidade de filosofar sobre seus atos e sobre o mundo ao seu redor, com Matz destilando variados relatos históricos para deixar evidente a podridão da alma humana.
No segundo ciclo, que se passa quatro anos depois do primeiro, a narrativa ganha contornos mais fortemente políticos, com o roteirista focando seu discurso na diferença entre países opressores e países oprimidos, o que inclui basicamente afirmar que Pablo Escobar era, em essência, bonzinho, que Cuba e Venezuela são países maravilhosos e sobre como os EUA são malvados e demoníacos e, claro, como os americanos não podem ser chamados de americanos, pois eles não são os únicos americanos das Américas. Ou seja, a filosofia cansativamente derramada ao longo do primeiro ciclo torna-se uma diatribe incessante contra o imperialismo, justificando as ditaduras latino-americanas como uma forma de resistência e assim por diante, tudo enquanto o protagonista passa a ser um peão em meio a uma intriga internacional que envolve principalmente Cuba, Venezuela e os Estados Unidos e que tem o petróleo como foco em um desenvolvimento sem dúvida interessante, mas que parece não terminar nunca e que alça o assassino de um matador solitário a alguém que, agora, trabalha em equipe – ainda que nas sombras – para um conglomerado. Finalmente, no que eu chamo de epílogo, a história chega a um fim (não o fim) interessante e satisfatório que ao mesmo tempo parece encerrar a carreira do assassino como algo mais do que apenas um assassino que age solitariamente e começar uma outra que, creio eu, será explorada em Assuntos de Estado.
Como ficou claro pelos meus comentários, os dois grandes arcos narrativos de O Assassino são marcados por uma quantidade significativa de blá, blá, blá que tende a cansar o leitor por sua repetição infinita de temas já bem sedimentados na primeira ou segunda vez em que são mencionados. Pouco importa, aqui, o que o leitor ache do posicionamento político do autor, até porque ele tem diversos ótimos pontos sobre, primeiro, a violência inerente em cada um de nós e, depois, a interferência destruidora dos EUA na política externa do mundo como mais um capítulo de sucessivos exemplos em que nações mais poderosas esmagam outras em desenvolvimento com seu poderio econômico e militar, mas há um limite para tudo e Matz tende a exagerar e a querer mostrar que estudou a fundo História do Mundo de maneira a derramar infinitos exemplos de barbaridades ao longo dos séculos e as já mencionadas citações dos mais variados autores e pensadores. Ou seja, é sermão atrás de sermão que faz a trama se arrastar tremendamente.
Por outro lado, se Matz é mão pesada em seu texto, a arte de Luc Jacamon é quase que perfeita. A razão do “quase” é que por vezes – mas poucas vezes – ele tende a usar fotorrealismo em splash pages, em uma escolha que, para mim, não combina com seu estilo artístico, especialmente na maneira como retrata os rostos dos personagens, valendo destaque para o protagonista, levemente caricato em sua impassividade. Mas esse é um detalhe, pois suas cores são espetaculares e representam muito bem a beleza dos variados locais em que a ação se passa. Seja a paradisíaca costa da Venezuela ou a tumultuada Paris, passando por Havana, Montreal, Buenos Aires e o deserto do interior do continente africano, tudo funciona maravilhosamente bem, um verdadeiro deleite visual.
Além disso, o ritmo narrativo lento do roteiro de Matz chega a ser compensado pela criatividade e fluidez das páginas, mesmo que, por vezes, o palavrório inserido nem sempre torne a leitura instintiva. Mas Jacamon faz o melhor para criar tanta variedade na forma como retrata sequências de ação quanto como para desenhar as diversas locações. Há uso de splash pages inspiradas em que uma imagem central é cercada de quadros que trabalham a progressão narrativa, há a repetição dos desenhos para emular câmera lenta cinematográfica e há constantes correlações de sequências no presente com outras no passado sem que haja quebra da narrativa visual. Se o texto inflado do roteirista cansa constantemente, a arte de Jacamon é um permanente deleite e uma desculpa mais do que suficiente para repassar cada volume depois da primeira leitura.
A leitura de O Assassino pode não ser sempre prazerosa em razão do texto muitas vezes atravancado de Matz, mesmo que a história e o desenvolvimento do protagonista ao longo dos 13 álbuns seja inegavelmente muito interessante, mas essa impressão é mitigada pela arte de Jacamon que, essa sim, é sempre digna de uma detalhada exploração visual por parte dos leitores. No final, fica a impressão de uma história que poderia ser contada em muito menos páginas mantendo-se todas as lições históricas que o autor queria passar, mas, nesse caso, haveria muito menos espaço para o desenhista fazer sua arte. Tudo tem um preço, não é mesmo?
O Assassino – Obra Completa (Le Tueur – França, 1998 a 2014)
Contendo:
– Long Feu (outubro de 1998)
– L’Engrenage (abril de 2000)
– La Dette (agosto de 2001)
– Les Liens du Sang (agosto de 2002)
– La Mort dans l’Âme (outubro 2003)
– Modus Vivendi (setembro de 2007)
– Le Commun des Mortels (agosto de 2009)
– L’Ordre Naturel des Choses (junho de 2010)
– Concurrence Déloyale (março de 2011)
– Le Cœur à l’Ouvrage (janeiro de 2012)
– La Suite dans les Idées (janeiro de 2013)
– La Main qui Nourrit (novembro de 2013)
– Lignes de Fuite (setembro de 2014)
Roteiro: Alexis Nolent (Matz)
Arte: Luc Jacamon
Editora original: Casterman
Datas originais de publicação: vide acima cada volume
Páginas: 56 páginas por volume (728 no total)