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Crítica | O Assalto ao Trem Pagador

Entre o tema e a representação, nos sobra os efeitos sociais.

por Davi Lima
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Assalto ao Trem

O filme Assalto ao Trem Pagador tem um tipo de história com crescente temática, algo que o público vai desvendando, ao mesmo tempo em que se desgarra dela, mantendo o efeito do tema sem depender dele. É nessa maestria que o tema racial vai ser representado com a direção de Roberto Farias na obra. O diretor conquista o público  no suspense policial e no visual de faroeste – desde as primeiras cenas de um roubo de trem – fora toda a linguagem de profundidade de duelos no espaço urbano brasileiro. Nessa composição audiovisual cresce o subtexto de um grande assalto, o drama racial no cenário endinheirado de Copacabana e na hierarquia violenta do morro carioca. O diretor mantém o filme com seus ângulos abertos e elipses narrativas para manutenção constante da atenção, mas sem clímax de suspense, apenas um pessimismo representativo da injustiça social.

A grande força da direção de Roberto Farias é entender a subtração como reforço narrativo. A cada elipse, ou cada montagem de cenas conflituosas entre a riqueza e a pobreza, ou a alegria e a preocupação entre os assaltantes do Trem Pagador, não apenas unifica estavelmente todas as tramas e subtramas, como impede desvios da história que criam uma tensão centralizante do dinheiro como mal social. O filme provoca muito mais reflexões representativas da sociedade brasileira que o dinheiro criminoso evidencia, como a relação entre entre irmãos, a religião, o luxo carioca, o poder na favela e, claro, o racismo. 

Em nenhuma viagem por esses assuntos se perde o trem narrativo, onde o suspense envolta do dinheiro que a polícia persegue, se alinha ao olhar trágico de Tião (Eliezer Gomes) e seus compatriotas, mobilizando o filme a todo tempo entre a vida íntima com o montante e perigo iminente dele ser desvendado, mesmo quando tudo soa mais dramático e estático nas relações entre os personagens. O longa-metragem não perde seu grande escopo do início, o que ajuda bastante a entendermos como Farias busca tornar a proporção do “baseado em fatos” na própria imagem, tornando o assalto real que aconteceu na Linha Férrea Central do Brasil, em Japeri, Rio de Janeiro, em 14 de junho 1960, bem menos jornalístico.

Além de se diferenciar contextualmente no cinema brasileiro, na década de 60, após a queda das chanchadas, tematicamente Assalto ao Trem Pagador trata o dinheiro como tema distinto. Não apenas por seriedade temática – como um confronto não necessariamente planejado ao burlesco sucesso do cinema nacional -, mas principalmente por colocar problemas socioeconômicos em volta do conhecido assalto. Se o que chamou atenção para a época foi como Farias parecia dar uma nova cara ao cinema brasileiro, a construção narrativa em como criar efeitos temáticos sociais sem depender do tema dinheiro como principal conflito culpabilizante é o que persevera na qualidade da direção da obra.

Como consequência dessa construção, acaba-se medindo o grande clímax antecipado, ainda tendo pouco realismo de linguagem bang bang – pistolagem de difícil gravação -, junto com o realismo temático da representação do que o personagem Tião é para o morro carioca, de liderança, paternidade e anti-heroísmo. Os meandros ao redor do personagem e os desfechos do filme abraçam a representação social brasileira como término evidente, pensamento último em meio ao subtexto sobre a constante mortandade. 

 O filme não depende exclusivamente da temática do conhecido assalto, ou de mudar o curso para  colocar o dinheiro como vilão abstrato de temáticas sociais. Ele anseia constantemente por representações visuais nos personagens, especialmente Tião. E estranhamente isso também é um problema da obra. O apego à representação do material reflexivo e social que, por um lado, não é romantizado e é reforçado dramaticamente pelos ângulos da câmera, por outro perde força interna na maneira como a direção usa teatralidade nos diálogos para falar sobre racismo, principalmente. O que funcionava para as elipses e para o suspense policial perde para a base dramática do filme.

Não é a toa que a última cena de fato é uma foto, como se o trem do filme quisesse realmente chegar ali, claramente trilhando em a construção de Tião e a a força de sua imagem envolta em seu personagem, num cenário carioca polido pelo cenário urbano e periférico. No entanto, se o efeito dos temas do filme chegam até nós com força, com o subtexto crescendo, a finalização de Assalto ao Trem Pagador não finca bem sua proposta inicial. Se a direção de Farias antes fazia um percurso de integração entre o tema e a técnica audiovisual, acaba que seu plano se desorganiza. As escolhas de ângulos de focar nas atitudes do delegado para que o suspense do dinheiro forçadamente continue, na câmera frontal que grava a esposa de Tião, nos zoom in e zoom out postos entre a esposa e a amante do anti-herói no hospital; tudo isso anseia por retomar a tensão racial como ponto dramático em Tião e, por efeito reflexivo, familiar na esposa dele. É uma verdadeira fotografia social brasileira, mas também uma lambança bonita pela tentativa de organizar tantas vertentes num encerramento.

Esse anseio é externo como a representação, de maneira que a profundidade visual de Farias tateia em reforços cinematográficos repetidos de uma finalização tardia demais para o filme como um todo, que tem um clímax antecipado. Se o pessimismo é trilhado pelo suspense com um subtexto racial que vem como uma locomotiva, o drama trazido a nós pela fotografia é a representação da triste realidade do Brasil em que um roubo não altera estruturas sociais injustas, assim como a manutenção da linguagem de Farias não delimita dramas além da representação, por bem e por mal.

O Assalto ao Trem Pagador – Brasil, 1962
Direção: Roberto Farias
Roteiro: Roberto Farias, Luiz Carlos Barreto, Alinor Azevedo
Elenco: Reginaldo Faria, Grande Otelo, Eliezer Gomes, Jorge Dória, Ruth de Souza, Luíza Maranhão, Miguel Ângelo, Helena Ignez, Átila Iório, Miguel Rosenberg, Dirce Migliaccio, Clementino Kelé, Gracinda Freire, Oswaldo Louzada
Duração: 102 minutos

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