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Crítica | O Arlequim Morto e O Pássaro Com a Asa Quebrada, de Agatha Christie

A arte de "investigar sem querer".

por Luiz Santiago
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O presente compilado traz 2 contos do livro O Misterioso Mr. Quin, de Agatha Christie, publicado originalmente no Reino Unido em 1930. No Brasil, a coletânea já foi lançada pela Nova Fronteira, pela L&PM Pocket. Em 2022 (a edição mais recente em relação ao momento de escrita desta crítica, em agosto de 2023), saiu pela Harper Collins Brasil.

Neste livro, Agatha Christie, brincou com figuras bastante caras a ela desde a sua infância: Arlequim, Pierrô e Colombina, fazendo joguinhos de mistério centrados na figura do Sr. Quin (que é uma alusão, claro, ao Arlequim). A versão que a autora resolveu personificar em seu livro é a da abordagem inglesa para o personagem, que surgiu na Commedia Dell’arte italiana do século XVI. Nesta versão, o Arlequim tem poderes mágicos e traz mudanças de cenário com um toque de comédia. Ele se veste de maneira peculiar e consegue manipular o jogo nos cenários onde surge. Além dele, outra figura de destaque é a do Sr. Satterthwaite, um observador arguto que adora bisbilhotar a vida alheia e fica impressionado quando encontra o Sr. Quin.

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O Arlequim Morto

Satterthwaite está visitando uma exposição numa galeria de arte, apreciando o trabalho do jovem artista em ascensão Frank Bristow, de quem gosta bastante. Durante a visita, seus olhos são imediatamente atraídos para uma tela chamada The Dead Harlequin, que retrata uma figura morta no chão, e, num outro ponto da tela, a mesma figura olhando por uma janela aberta para seu próprio cadáver. O homem retratado é o Sr. Harley Quin — sim, o misterioso Mr. Quin da coletânea — e não, não existe uma explicação racional para isso no conto: a abordagem da autora para a questão é envolta no mistério recorrente diante do personagem. Mas isso não configura um problema, só para deixar claro. Já o quarto mostrado é o Terrace Room, em Charnley, uma casa de propriedade de Lord Charnley, que Satterthwaite visitou há muitos anos.

Existem aqui alguns elementos emprestados do conto de abertura do volume, A Chegada do Sr. Quin, com a autora reforçando a ideia de que é possível olhar para um crime cometido no passado e encontrar a resposta para ele. De que é possível ver com muito mais nitidez esses eventos, a partir de um ponto de vista presente, quando as emoções já estão assentadas e quando não existe pressa em resolver o mistério… ou se está a par dos detalhes de toda a situação, mesmo que esses detalhes não sejam verdadeiros e apontem para outra direção. Não acho que essa retomada diminua a qualidade do conto. É um conceito interessante e bem explorado no texto, embora o leitor tenha fortemente a sensação de estar vendo um trabalho em cima de uma ideia já apresentada pela autora. No mesmo livro.

Como acontece com a maioria dos enredos de O Misterioso Mr. Quin, eu tenho problemas com o caminho para o desfecho. E de certa forma, com o desfecho em si. Novamente, vê-se uma pitada de romance, melodrama e fatalidades, todas elas exploradas numa esfera aceitável, de ocorrência do drama, mas tudo muito superficial e requentado. É um daqueles contos em que não existe algo verdadeiramente ruim, mas aquilo que se apresenta não é nada demais.

  • Publicado na edição #289 da Grand Magazine (revista pulp do Reino Unido), em Março de 1929.

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O Pássaro Com a Asa Quebrada

Com referência à composição Um Cisne (En Svane), de Edvard Grieg, The Bird with the Broken Wing traz um caso de feminicídio com uma revelação chocante, odiosa, tendo o assassino assumido que cometeu o crime “porque era muito fácil“. A história toda tem um clima de danação, como se uma maldição ou algo muito maior estivesse pairando sobre Satterthwaite e a família que ele visita nessa história. No começo do conto, o velho observador do comportamento humano está em visita a uns conhecidos da burguesia inglesa, pensando em sua casa, em Londres. O tédio se transforma em curiosidade quando alguns convidados, em uma sessão espírita, soletram uma palavra (Laidell, nome de uma propriedade que Satterthwaite  conhece bem). De pronto, o grande observador liga para a anfitriã da propriedade, Madge Keeley, e aceita o convite para ir à uma festa que há pouco recusara.

É bem interessante que Mr. Quin não apareça aqui antes da cena final do conto. Sua presença é indicada apenas de forma sobrenatural, na mesma sessão espírita que dá o nome da propriedade para Satterthwaite e, ao longo de toda a história, o velho milionário está atento, procurando algo onde deve intervir, procurando o momento que em que deve evitar uma tragédia. A atmosfera pessimista se arrasta em toda a história, e quando o crime de fato acontece, é como se uma “morte anunciada” finalmente se cumprisse. O leitor não fica espantado, mas a angústia que a autora constrói chega ao seu ponto máximo durante o evento. Essa é uma das histórias em que Agatha Christie mais conseguiu estruturar um ambiente doente, perigoso e cheio de segredos e hostilidades, com alguns candidatos óbvios tanto para ser morto, quanto para ser o assassino.

Talvez esta seja a interação mais inexplicável entre Satterthwaite e Mr. Quin, em toda a coletânea. Não é a primeira vez que uma sessão espírita aparece numa história da Rainha do Crime, mas é talvez uma das pouquíssimas em que esse tipo de atividade é realmente levada a sério. E sendo franco, não poderia ser de outra maneira. Faz todo o sentido que isso apareça como algo divinatório em um conto envolvendo Mr. Quin, que inclusive sai de cena num piscar de olhos, no rápido encontro que tem no trem, com o velho amigo Satterthwaite. A reflexão de O Pássaro Com a Asa Quebrada é muito boa. A autora abraça a tragédia como se fosse um ponto fixo na trama da existência. Algo do tipo “aconteceu porque tinha que acontecer“. A intervenção, nesse caso, é para que, no contexto dessa situação, pessoas inocentes não saíssem machucadas ou injustiçadas. E que o verdadeiro culpado fosse imediatamente punido.

  • Único conto inédito da coletânea original.

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O Misterioso Mr. Quin (The Mysterious Mr Quin) — Reino Unido, 14 de abril de 1930
Autora: Agatha Christie
Edição original: William Collins & Sons
Edição lida para esta crítica: Harper Collins Brasil, 2022
Tradução: Samir Machado de Machado
Arte da capa original: Thomas Derrick
290 páginas

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