É muito interessante acompanhar a carreira de Peter Weir de filme a filme, pois isso ajuda a revelar a evolução de um cineasta que, como a grande maioria, começou pequeno e foi galgando seu espaço, mas, no caso dele, sem perder sua personalidade, sua forma peculiar de abordar assuntos delicados. Confusão em Paris, seu primeiro longa, é bem regional, fortemente “australiano”, por assim dizer, com uma abordagem que resvala no absurdismo e no experimental. Piquenique na Montanha Misteriosa, seu segundo filme, mostrou seu valor e começou a abrir as portas do mundo para ele, mesmo com uma obra também eminentemente australiana, opondo a colonização à ancestralidade da terra. A Última Onda sedimentou essa sua abordagem, trafegando mais fortemente ainda na espiritualidade. O telefilme O Encanador, apesar de ser, na prática, um passo atrás em termos de orçamento e alcance, mostra que mesmo com limitações, Weir não fazia concessões. Gallipoli marcou, então, sua primeira vez contando uma história parcialmente passada fora da Austrália, ainda que tratando de um episódio histórico que marcou profundamente seu país.
E, com O Ano que Vivemos em Perigo, adaptação do romance homônimo de C.J. Koch publicado em 1978, Peter Weir efetivamente “sai” de seu país, abordando as semanas que antecederam a tentativa fracassada de golpe por parte do chamado Movimento de 30 de Setembro na Indonésia, em 1965, pelos olhos de dois correspondentes estrangeiros, um jornalista e um fotógrafo, em um longa que, a não ser que eu esteja muito enganado, foi e ainda é a única vez em que o assunto foi abordado no Cinema ocidental. Sem conseguir financiamento público para seu projeto, Weir recorreu à MGM que iria distribuir o longa fora da Austrália, mas que aceitou bancar todo o orçamento, marcando o começo de seu caminho em direção à Hollywood, algo que já ficaria evidente com sua obra seguinte, A Testemunha.
Apesar de haver um componente romântico no filme, ou seja, o relacionamento amoroso entre o inexperiente jornalista australiano Guy Hamilton (Mel Gibson) e a diplomata britânica Jill Bryant (Sigourney Weaver), tenho para mim que essa linha narrativa é de menor impacto e importância, ainda que Weir a execute com todo o seu usual cuidado, fazendo do relacionamento uma maneira de deixar ainda mais evidente os caminhos morais do personagem de Gibson na medida em que ele se embrenha na precária situação socioeconômica do país onde está lotado. O que realmente chama atenção em O Ano que Vivemos em Perigo é um relacionamento de outra natureza, um de mentoria e amizade entre Guy e o experiente e inteligente fotógrafo sino australiano Billy Kwan (Linda Hunt) que não só é o narrador do filme, como funciona como a baliza moral da obra, assim como o condutor de Guy – e do espectador – por toda a miséria do país, além dos conflitos entre o presidente autocrata Sukarno – que fora um dos grandes responsáveis pela libertação do país do jugo holandês – e as manobras políticas para derrubá-lo.
Linda Hunt, que levou o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante – o único até hoje dado a um ator que vive personagem do sexo oposto – é um incrível achado de Weir e uma escolha curiosa para o papel, por razões óbvias, até porque Hunt vive um personagem que não tem seu sexo discutido em momento algum no roteiro. Mas, claro, o cineasta abraça a oportunidade para criar um belo subtexto de androginia, com Hunt também fazendo o mesmo sem nenhuma ajuda de maquiagem e figurino para além de um corte de cabelo mais masculino e o uso de enchimentos nos ombros. É fascinante vê-la vivendo Billy não só pelo feito em si, mas também porque o fotógrafo é escrito como o único estrangeiro no país que real e verdadeiramente é afetado pelo que testemunha ao seu redor, enxergando no inocente Guy alguém que tem o mesmo potencial, somente para vê-lo descambar para o lado da ambição. Bobby é, no filme, a voz da razão, o reflexo da visão Ocidental sobre um povo oprimido entre tensões políticas e, também, um marionetista que benignamente controla – ou fortemente influencia – Guy e o coloca na direção certa tanto profissional quanto amorosamente.
Gibson e Weaver também estão bem no filme, vale dizer, ainda que sejam atuações bem mais funcionais do que particularmente especiais. Mas o par romântico hesitante entre seus personagens convence e Weir extrai o melhor dessa relação dentro da estrutura do filme, sem jamais deixar de lado seu ponto mais importante que reflete sua filmografia toda até a produção deste filme, que é a abordagem dos efeitos nefastos da colonização na população local ou, talvez mais amplamente falando, da manipulação, uso e descarte dos seres humanos pelo regime dominante, algo que a fotografia escura, suja, opressiva e por vezes caótica de Russell Boyd pontua muito bem valendo-se de filmagens em locação não na Indonésia, que não autorizou a produção, mas sim nas Filipinas até que eles começaram a receber ameaças de morte e tiveram que retornar à Austrália. Guy Hamilton e Jill Bryant trafegam entre os polos, mostrando a compaixão daqueles que sabem que não ficarão por ali por muito mais tempo, mas não da maneira genuína que afeta Bobby profundamente por toda a obra em razão de sua inteligência e consciência até a sequência climática em que tudo converge.
O Ano que Vivemos em Perigo é definitivamente uma obra de Peter Weir mesmo que, agora, com dinheiro privado e de um grande estúdio americano. O cineasta não faz concessões e, com seu longa, ajuda a “encerrar” a chamada New Wave australiana, com os mais importantes nomes da indústria local migrando para o outro lado do Pacífico, mas, no caso dele, em grande parte sem perder sua valiosa assinatura.
O Ano que Vivemos em Perigo (The Year of Living Dangerously – Austrália/EUA, 1982)
Direção: Peter Weir
Roteiro: David Williamson, Peter Weir, C.J. Koch (baseado em romance de C.J. Koch)
Elenco: Mel Gibson, Linda Hunt, Sigourney Weaver, Bill Kerr, Michael Murphy, Noel Ferrier, Bembol Roco, Paul Sonkkila, Ali Nur, Mike Emperio, Domingo Landicho, Kuh Ledesma, Cecily Polson
Duração: 114 min.