Entre momentos de ruptura e surgimento de novas estruturas, as sociedades atravessam um longo caminho de imprecisões e inseguranças. O cinema e a sua capacidade de emular tal subtexto, mesmo que de maneira “inconsciente”, é um dos mecanismos mais poderosos para a captação de tal fenômeno. Observe, por exemplo, o cinema de horror dos anos 1970. Alguns cineastas colocaram firmeza em seus discursos posteriores, ao alegar que as suas produções não tinham nada a ver com os impactos do devastador conflito bélico nos filmes.
Basta assistir aos primeiros trechos de O Massacre da Serra Elétrica para entender isso. O cineasta não precisa concordar. As sensações ficam como partículas dispersas no ar. Para alguns, antenados com o contemporâneo, a compreensão é imediata. Para outros, por sua vez, é preciso sair da nebulosidade da atualidade para entender o que se passou. A crise do petróleo, a decadência do movimento hippie, o legado de dor e miséria da guerra, dentre outros traços sociais, encontram-se todos envoltos nesta e em tantas outras realizações da época.
No Brasil contemporâneo, podemos dizer o mesmo. Na atual fase de golpes políticos, circo midiático envolvendo representantes governamentais, devastação dos recursos naturais, subserviência ao american way of life por parte dos mais altos cargos que comandam a nossa nação, dentre tantas aberrações, dentre elas, o desejo pelo porte de armas como uma espécie de brincadeira adolescente, bem como a falta de qualquer polidez nos discursos que nos representam mundo afora, o cinema de horror brasileiro tem material de sobra para permitir a germinação de diversos filmes sobre a nossa realidade tão aterrorizante.
O crescimento vertiginoso de filmes de terror nos últimos anos não aponta apenas para o interesse da indústria em realizar obras que permitam a nossa cinematografia um passeio mais ousado por outros segmentos que não sejam as comédias românticas ou os horrores dos tiroteios nas favelas cariocas. Há, sim, desde a época em que Zé do Caixão era a exclusividade do terror no Brasil, o interesse em trafegar por outros ramos narrativos que saíssem do eixo mais comum. Demorou algum tempo para que isso ocorresse, mas agora vivemos uma fase mais abundante.
Ainda temos que nos desconectar de certos maneirismos estadunidenses no jeito de contar essas histórias e O Animal Cordial, escrito e dirigido com eficiência por Gabriela Amaral, inspirada numa história de Luana Demange, é prova cabal desta nossa possibilidade. Sem apresentar-se apenas como entretenimento, a produção é o que consideramos atualmente como “novo terror”, isto é, tramas brasileiras que mesclam elementos estéticos do gênero com ferrenhas críticas sociais. Para a diretora, “vivemos um período cheio de monstros”, por isso, “o terror é um espaço narrativo ideal para decodificar essas angústias e tensões indefinidas”. Temos, assim, a possibilidade de mergulhar no desconhecido.
É, assim, que nós brasileiros, podemos enxergar 2019. Realizado em 2017, o filme é, ao longo de dos seus 98 minutos, uma antecipação do horror que se estabeleceria em nossa sociedade no ano seguinte. Com elementos para discussões sobre feminismo, homofobia, xenofobia e desigualdade social, O Animal Cordial é uma trama que flerta com a alegórica sobrevivência de um grupo de pessoas em um restaurante de São Paulo. Inácio (Murilo Benício), o gerente, é um homem bastante exigente. Certa noite, o local é assaltado e transforma-se no palco de discursos violentos, comportamentos suspeitos e muito sangue.
Ele chega a render os bandidos, numa virada de jogo, mas logo adiante, perde o controle das coisas novamente. Dentro do sufocante ambiente, tomado pela claustrofobia, os ânimos ficam exaltados e nós, tampouco os personagens, imaginam como as coisas irão acabar. A carne, servida pelo restaurante, é parte do cardápio preparado com corpos humanos? Como podemos compreender a relação do gerente com Djair (Irandhir Santos), responsável pela comida ofertada? Os ladrões são fortes o suficiente para dominar tal situação? O que fica estabelecido de cara é que nós todos somos capazes de comportamentos horrendos quando colocados sob pressão.
Sob a direção de fotografia de Barbara Alvarez, contemplamos os espaços de um restaurante falido que anteriormente, havia passado por um traumatizante assalto. Os seus quadros e movimentos captam bem a sensação claustrofóbica do espaço reduzido. Denis Netto, responsável pelo design de produção, entrega ao público espelhos quebrados e arquitetura que beira ao expressionismo, material que ergue as imagens conduzidas musicalmente pelos sintetizadores de Rafael Cavalcanti. Ademais, 2018 foi o ano de cada um por si e talvez Deus por todos, ideia que está claramente compilada em O Animal Cordial. Bom representante do “novo terror” brasileiro, o filme é um retrato doloroso e cruel da miséria social que nos deparamos cotidianamente, em especial, as imagens que tornamos tão naturais pelo fato de sermos tão expostos.
O Animal Cordial — (Brasil, 2017)
Direção: Gabriela Amaral
Roteiro: Gabriela Amaral
Elenco: Ariclenes Barroso, Camila Morgado, Diego Avelino, Eduardo Gomes, Ernani Moraes, Humberto Carrão, Irandhir Santos, Jiddu Pinheiro, Luciana Paes, Murilo Benício, Thais Aguiar
Duração: 98 min.