Graham Greene era um debochado. Um debochado que escrevia maravilhosamente bem, mas, mesmo assim, um debochado. E, pode não parecer, mas eu não afirmo isso como um característica de alguma forma negativa, pois saber debochar – sutilmente ou não – é algo que poucos realmente dominam e menos ainda com a categoria do escritor britânico. Um de seus livros mais conhecidos, O Americano Tranquilo, eleva o deboche ao nível de arte, mesmo que ele normalmente seja mais lembrado como um romance – escrito em 1955 – que anteviu a Guerra do Vietnã, com a polêmica e desastrosa campanha americana na região dando, de certa maneira, continuidade à Guerra da Indochina, não menos polêmica e desastrosa.
E esse deboche – ou ironia fina – já começa no título, que adjetiva o americano de tranquilo ou, mais diretamente traduzindo, de quieto. Esse americano é Alden Pyle, um jovem agente da CIA trabalhando secretamente no Vietnã para minar o governo loca. Ele é inexperiente e baseia toda sua visão idealista de mundo em seu autor fictício preferido, York Harding, que preconiza que a melhor maneira de lidar com países como o que ele está é usar uma Terceira Força combinando colonialismo com comunismo, em uma daquelas visões obtusas e binárias de mundo e, pior ainda, de segunda mão. O “tranquilo” ou “quieto” que qualifica Pyle é um sinônimo para ignorante, ou, deixando de lado qualquer tipo de eufemismo, um sujeito burro, que age automaticamente com base em conhecimento reciclado.
Mas Pyle não é o protagonista da história. Este é o jornalista britânico Thomas Fowler, basicamente um alter-ego do próprio Graham Greene, que trabalhara como correspondente de guerra para o jornal britânico The Times e o francês Le Figaro, durante a Guerra da Indochina. Ele é o narrador e o personagem principal, com a história começando logo em seguida à morte de Pyle, com Fowler, então, contando a história do que aconteceu em dois tempos, especialmente o passado a partir do momento em que os dois se conheceram. A ironia de um britânico criticando um americano que faz exatamente a mesma coisa que seu país fazia e ainda continuaria fazendo por um tempo não foge à Greene, claro, pois ele faz de seus personagens representantes de seus países, criando o segundo ponto focal de sua ironia ao criar um triângulo amoroso entre Pyle, Fowler e a jovem vietnamita Phuong.
Brilhantemente, Greene “reduz” o imperialismo a um estranho caso de amor tripartite em que a mulher, mais frágil naturalmente em uma obra escrita nos anos 50, é o objeto da cobiça dos dois homens, naturalmente mais fortes pela mesma razão que a mulher é mais frágil. Sem dúvida que essa alegoria é evidente em O Americano Tranquilo, mas isso não retira sua perspicácia. Phuong acende os cachimbos de ópio de Fowler com a mesma subserviência com que, depois, larga o britânico – casado, aliás – pelo americano que promete mundos e fundos, trocando o velho pelo novo, o ultrapassado pelo promissor, mas ambos literalmente farinha do mesmo saco ou, talvez, um sendo o aprendiz do outro em alguma medida. É uma passagem de bastão, com o declínio do Império Britânico pós-Segunda Guerra Mundial coincidindo com a ascensão de um novo e ainda mais poderoso Império e Phuong – ou o sudeste asiático – no meio dessas duas forças que, claro, se preocupam com o avanço do comunismo que, no romance, permanece como um espectro e não exatamente é trabalhado na história diretamente para além do contexto macro geopolítico.
O Americano Tranquilo até pode ser classificado como uma obra policial/investigativa, já que, ostensivamente, seu foco é no que exatamente aconteceu com Pyle. Mas essa é apenas a cortina de fumaça, até porque os contornos do que houve já se apresentam logo no início para quem estiver prestando atenção no inteligente jogo de palavras de Greene. O que realmente importa é o autor quase que literalmente transformando Pyle – ou, melhor dizendo, os EUA – na Terceira Força que o próprio falecido tanto fala, já deixando entrever aquilo que tornaria o livro presciente, que é, claro, o esforço militar americano no Vietnã para tentar evitar o avanço da União Soviética. Mas o mais interessante não é a presciência sobre a incursão americana por lá, pois isso é algo que, imagino, fosse detectável com alguma facilidade à época, mas sim a maneira atabalhoada como tudo seria feito, com informações de segunda mão gerando reações exageradas e até inocentes que expandem o “americano tranquilo” do título para o governo americano da época como um todo. Greene não chega a prever exatamente o fiasco dos anos seguintes, mas seu romance é como um aviso, um alerta, com base em sua experiência própria como correspondente de guerra e também como membro do então falimentar Império Britânico, sobre uma estratégia muito claramente fadada ao fracasso.
E o interessante é que o peso político do que o autor escreve é aliviado pela forma como ele narra seus eventos, primeiro configurando sua história como um whodunit sofisticado que é apenas o verniz para o embelezamento de seu muito bem trabalhado triângulo amoroso que, por sua vez, reflete o panorama geopolítico do mundo à época e, diria, até hoje em dia em determinadas regiões. Sem dúvida é um romance presciente, mas, mais do que isso, é um romance que trata tudo com um debochado ar de falsa superioridade que consegue extrair um certo grau de humor ácido de um panorama que Greene já percebia como terrível e que nós só viríamos a enxergar o mesmo quase que totalmente em retrospecto. O Americano Tranquilo é uma leitura enganosamente “fácil” e “divertida”, o que só demonstra a capacidade do autor em usar sua ironia fina para tornar mastigável e palatável uma tragédia anunciada.
O Americano Tranquilo (The Quiet American – Reino Unido, 1955)
Autor: Graham Greene
Editora original: William Heinemann London
Data original de publicação: dezembro de 1955
Editora no Brasil: Biblioteca Azul (Globo Livros)
Data de publicação no Brasil: junho de 2016
Páginas: 251