Como resistir a um filme que é a estreia hollywoodiana do cineasta chinês John Woo em que ele traz todos os seus cacoetes visuais, ou seja, câmeras lentas, pombos e pombos em câmera lenta e que é estrelado por Jean-Claude Van Damme com um hilário mullet, além de contar com o sempre bacana antagonismo de Lance Henriksen e de um dos atores que mais perfeitamente combina aparência e nome vilanescos, Arnold Vosloo? Some-se a isso a boa e velha trama de O Jogo Mais Perigoso (ou Zaroff), famoso conto de 1924 de Richard Connell sobre homens caçando homens e pronto, temos tudo o que é necessário para uma boa e por vezes muito engraçada diversão.
E diversão é exatamente o que Woo entrega, começando até discretamente com uma investigação sobre o paradeiro do veterano sem-teto Douglas Binder (Chuck Pfarrer), que vemos ser morto na caçada que preludia o filme, em Nova Orleans e que de repente descamba para uma guerra campal digna de filme pós-apocalíptico em que Emil Fouchon (Henriksen), o rico organizador desse simpático esporte, com a ajuda de seu braço direito Pik van Cleef (Vosloo) e um pequeno exército, parte para cima de Chance Boudreaux (Van Damme), também um veterano sem teto, e Natasha (Yancy Butler), filha de Douglas, que contrata seus serviços, pelos pântanos da Louisiana. E, quando digo “de repente”, quero dizer isso mesmo, pois por pelo menos metade da duração da fita, acompanhamos um até lento trabalho detetivesco do protagonista intercalado por momentos de vilania pura de Fouchon, como a cena em que o vemos sereno, vestido de branco, em uma enorme sala branca, tocando um piano de cauda branco, só faltando um gato angorá branco para terminar de compor o momento, que é literalmente trocado pela mencionada perseguição sem a menor preocupação com a discrição que os vilões demonstram ter no início.
O negócio é tão gritante, que chega a ser cômico, quase como se estivéssemos assistindo dois filmes em um, como Psicose e Um Drink no Inferno, o primeiro uma compassada e contida investigação e o segundo uma versão bem menos elegante e substancialmente mais explosiva de Rambo – Programado para Matar. Mas o melhor é que essa combinação funciona graças principalmente ao exagero estilístico de Woo que se mostra aqui tão afetado quanto Zack Snyder em seus momentos supostamente mais autorais. A única luta do “primeiro filme”, em que Chance salva Natasha de bandidos em plena luz do dia (depois de um seriamente genial momento em que ele afasta o sobretudo à la Sergio Leone, claramente uma das inspirações de Woo, para mostrar sua arma letal, ou seja, sua perna), é substituída por Chance, com cabeleira esvoaçante que faria inveja a muito anúncio de xampu, andando de moto como malabarista de circo, arrancando o chocalho de uma cascavel com os dentes e socando-a em seguida e explodindo tudo ao seu redor, mesmo coisas que claramente não poderiam explodir como fantasia em um “cemitério” de Mardi Gras.
Em outras palavras, eis um filme de Van Damme que casa bem as bobagens completas de diversas de suas obras anteriores com o maneirismo de um diretor que gosta de deixar sua assinatura histriônica – mas divertida – em cada fotograma, como se Woo não entendesse que “Van Damme com mullet” é tudo que alguém de posse de suas faculdades mentais precisaria saber para fazer de tudo para assistir a esse filme. Se o belga, em suas obras de começo de carreira e grande parte daquelas dos anos 90, sempre soube marcar sua presença de uma forma ou de outra – um espacate impossível aqui, uma expressão de dor engraçadíssima lá – sua reunião com o diretor chinês transforma O Alvo em um desfile de momentos visualmente memoráveis, ainda que isso não signifique, de forma alguma, que sejam apenas bons momentos memoráveis, que isso fique bem claro, já que a comédia inadvertida é parte de vários deles e também um pouco do charme da coisa toda. Como disse, um filme irresistível!
O Alvo (Hard Target – EUA, 1993)
Direção: John Woo
Roteiro: Chuck Pfarrer
Elenco: Jean-Claude Van Damme, Lance Henriksen, Arnold Vosloo, Yancy Butler, Kasi Lemmons, Chuck Pfarrer, Willie C. Carpenter, Wilford Brimley, Eliott Keener, Marco St. John
Duração: 97 min.