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Crítica | O Acidente (2022)

Grande retrato de pequenos detalhes.

por Frederico Franco
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A vulnerabilidade assusta. A sinceridade também. O silêncio, muitas vezes escolhido como forma de neutralizar esses sentimentos, cria tensão e angústia. O não dito é enigmático, mas tão poderoso quanto qualquer forma de comunicação verbal. Em O Acidente, o diretor Bruno Carboni realiza um grande retrato de pequenos detalhes capazes de dar sentido àquilo que não é falado. O filme já inicia com o incidente incitante presente no título: Joana, enquanto pedala pela cidade, encontra-se envolvida em um acidente de carro e é gravada pelo menino Maicon, de doze anos, que estava no banco de carona do automóvel de sua mãe Elaine. Depois do ocorrido, Joana e sua namorada Cecília se veem envolvidas em um jogo de xadrez com a mãe de Maicon e seu pai, Cléber. O acidente parece não ter abalado Joana, que, mesmo grávida, sequer menciona o acontecimento com sua companheira em um primeiro momento; o fato só aparenta atormentar a protagonista quando esta descobre que o vídeo gravado por Maicon foi publicado em uma rede social. A partir daqui, Joana fica particularmente interessada pelo menino e por suas gravações amadoras.

A apatia é uma marca da personagem principal do início ao fim do filme. Quase sempre é enquadrada sozinha, ou quando é vista em um conjunto sempre aparenta haver um oceano de distância entre a outra pessoa. É justamente nos momentos pontuais em que essa lógica é quebrada que surge todo o mérito da direção de Bruno Carboni: os detalhes. Parafraseando, aqui, uma fala do menino Maicon: os detalhes mostram aquilo que a vida deixa passar. Esse é um dos encantos do próprio cinema – conseguir apresentar, por meio do detalhe, uma poética que o olho humano não é capaz ou não quer notar. A relação de Joana com Cecília é marcada por certa distância e frieza, mas uma cena específica consegue conotar que, para além desse jogo de cinismo, há uma dinâmica de afeto muito íntima e particular. As duas, quando deitadas na cama, entrelaçam suas mãos e conduzem um honesto balé de carícias enquanto sussurram palavras inteligíveis uma para a outra. Se o silêncio e o afastamento entre ambas diz que nesta não existe nada intimidade, a dança das mãos aponta para uma direção contrária. Em outra cena, diversos amigos se reúnem no apartamento do casal para celebrar seu casamento. Depois de um emocionante discurso de um dos convidados, um corte nos leva até Joana e Cecília abraçadas no centro da sala dançando; enquanto isso, a música ultrapassa o limite diegético e parecemos estar vendo uma sequência onírica. Ali, os dois corpos estão unidos em um só. Nada é dito: tudo é mostrado.

Joana e Maicon compartilham, de uma maneira torta, similaridades em suas relações interpessoais. A frase do garoto aqui parafraseada por mim se dá em um diálogo com a protagonista no qual ele tenta justificar o porquê de gravar meros detalhes da vida – como um desenho na fachada da escola ou o voar dos pássaros. Quando na presença dos pais, Maicon parece engessado, obrigado a estar ali. Sua sensibilidade não é vista através de grandes gestos de carinho, mas sim por meio da câmera de seu celular. O detalhe, para ele, é uma exceção da vida, breves adendos que compõem a figura maior. Assim como para Joana, é um olhar marco da vida que revela sua verdadeira potência. As gravações de Maicon não dão importância para paisagens ou visões estéticas rebuscadas: tudo o que importa são os detalhes que constroem o mundo.

A direção do estreante em longa-metragens Bruno Carboni é assertiva ao nos apresentar as dinâmicas dos protagonistas ao utilizar certo cinismo. Ao longo do filme, poucas (ou nenhuma) vezes vemos aquilo que os personagens veem ou sabemos o que eles sabem. A focalização é completamente externa, tudo que Joana ou Maicon fazem não é possível de ser antecipado pelo espectador. Estamos sempre distantes. Eles sempre parecem esconder alguma coisa – Cecília, inclusive, verbaliza isso para Joana. Esse distanciamento torna as ações dos protagonistas como impensadas, não justificadas por jogos de causa e consequência. Em dado momento do filme, parece que estamos apenas acompanhando, sem julgamentos ou posicionamentos morais, trechos de um cotidiano onde não há drama. As possibilidades dramáticas, para deixar registrado, são deixadas em segundo plano – vide o aborto natural sofrido por Joana na segunda metade do filme. Carboni conduz o filme de um modo a dar à imagem um tom quase inocente, assim como as gravações de Maicon. Estamos vendo um específico recorte cotidiano. Não há drama, não há conflito: apenas pessoas vivendo.

O que o filme parece dar a entender é que, após o atropelamento, o cotidiano de Joana, antes completamente letárgico, ganhou, no mínimo, certa dinamicidade. Um evento, uma imagem, uma gravação, deu novos contornos à vida dela. Não é mistério, tampouco drama: apenas algo a mais, uma nova relação. Em dados momentos, Joana aparenta buscar drama para sua vida – principalmente quando tenta confrontar os pais do menino. É perceptível que a aproximação com Maicon se dá por sentir que os dois são parecidos: quietos, vulneráveis e curiosos. Suas ações, muitas vezes paradoxais, são um modo de dizer que muitas vezes a vida não possui explicações: há apenas uma zona cinzenta que nosso entendimento comum não é capaz de compreender, como diria Friedrich Durrenmatt. Nos últimos minutos do filme, quando Elaine busca dar um ponto final à relação de Joana com Maicon, a jovem a abraça e chora copiosamente. Como se uma parte de si tivesse morrido. E, de certa forma, isso aconteceu. Ela há de deixar Maicon e, com ele, seus segredos e suas partes mais frágeis.

O Acidente – Brasil, 2022
Direção: Bruno Carboni
Roteiro: Bruno Carboni, Marcela Bordin
Elenco: Carol Martins, Gabriela Greco, Luis Felipe Xavier, Carina Sehn, Marcello Crawshaw
Duração: 95 min.

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