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Crítica | Noturno do Chile, de Roberto Bolaño

por Pedro Pinho
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A história de Roberto Bolaño é bem famosa. Chileno e apoiador ferrenho de Allende durante a juventude, exerceu em conjunto à sua precoce carreira literária uma militância política efusiva, o levando até à prisão em 1976, durante o regime do general Pinochet. O protagonista do romance é o diametral oposto de seu autor: Sebastián Urrutia, um pároco com uma formação intelectual brilhante, além de crítico literário, mas sem qualquer envolvimento político. Urrutia compõe esse relato em primeira pessoa nos únicos dois parágrafos do livro, de cento e poucas páginas. Sim, o romance tem somente dois parágrafos. Parece meio cansativo, e pode até ser mesmo, mas nunca sem certa dose de neurose, isto é, de desespero.

Noventa e nove por cento do livro, na verdade, compõe apenas um longuíssimo parágrafo, deixando ao último parágrafo apenas uma única frase, tudo bastante assombrado pelo confronto do protagonista com suas memórias e a proximidade da morte. É a partir dessas memórias que Bolaño desenha sua curva satírica, evidência de que a diferença biográfica entre personagem e autor não poderia ser só uma nota de rodapé. O autor usa essa diferença para assumir uma posição de escárnio, de zoeira mesmo, colocando Urrutia em situações que só podem ser bem saboreadas com um sorriso sarcástico em mente. Essa é a onda do livro.

Urrutia é resultado do ódio que Bolaño cultivou durante sua vida inteira pela classe de artistas e intelectuais que conseguiu se manter suspensa no ar enquanto o resto do país desmoronava. Que reagiu ao golpe de estado com até certo alívio, melhor isso do que uma reforma agrária, e que com indiferença recebeu as notícias do que acontecia por baixo dos panos durante a ditadura. O que eles tinham a ver com isso? Noturno no Chile é uma espécie de resposta direta e sarcástica, mas nem sempre tão sutil. Bolaño abusa da posição de criador pra construir passagens tão marcantes quanto ilustrativas, além de patentemente irônicas. Como não abrir um sorriso quando Urrutia é chamado, de maneira bastante sigilosa, para dar aulas de marxismo para o general Pinochet? Ou quando Bolaño conta a história do pintor guatemalteco que definhava de fome enquanto a única coisa que gostava de fazer era observar as ruas de Paris? E que mesmo para pintar o próprio país o fez à luz da cidade europeia? Talvez com as mesmas motivações de Manuel Bandeira, nas suas copiosas críticas aos parnasianos, o autor busca ridicularizar os nefelibatas chilenos que não conseguiam fazer o mais essencial movimento dos livros para a realidade.

O interminável parágrafo em que se ocupa a prosa se transforma numa confissão neurótica, onde Bolaño está, de maneira subjacente, rindo às gargalhadas, segurando duas ferramentas fundamentais: a raiva e o sarcasmo. Nem sempre o equilíbrio entre essas duas é estável, a balança pesa para um lado em momentos como aquele em que o mentor de Urrutia, o maior crítico literário do Chile, o apalpa na bunda com insinuações sexuais, contando com nenhuma objeção ou reação do protagonista, que ainda sim descreve estar incomodado. Mas nunca deixa de ficar extremamente engraçado ou, de certa maneira, bastante melancólico. O que tem de mais taciturno do que o momento em que se descobre que a casa onde a nata da intelectualidade chilena se reunia era a casa de um torturador? E que era nos porões dessa casa que elementos “subversivos” eram torturados, e mortos, enquanto todo mundo discutia os rumos da poesia chilena no andar de cima?

Não é possível desvincular Bolaño dessa mensagem política, mas como se fossem coisas diferentes, Noturno do Chile possui também muita humanidade. É especialmente difícil assumir essa tarefa: contar em primeira pessoa a história de um personagem nesse tipo de situação, sob os olhos de alguém como o autor. Conferir complexidade à alguém que se nutre desprezo é quase impossível, e embora isso possa parecer contradizer o resto da resenha, não acredito que Bolaño despreze Urrutia, ao menos à medida em que ele não despreza a si mesmo. Afinal, o confronto com a morte e com a memória, além dos questionamentos resultantes disso, não parecem ser algo tão estranhos ao autor, que em 2000 escrevia um de seus últimos romances. Claro que pode não ser isso também, ou pode? É tudo bastante complexo.

Noturno do Chile (Nocturno de Chile) – Chile, 2000.
Autor: Roberto Bolaño.
Editora: Companhia das Letras.
Tradutor: Eduardo Brandão.
Páginas: 120.

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