As famílias Canfield e McKay têm relação nada amistosa entre si. Desde tempos remotos brigam por propriedades, até que, numa dessas batalhas, o patriarca McKay leva a pior, deixando um filho órfão, Willie McKay (Buster Keaton). Longe de tudo isso, e muitos anos depois, o menino cresce e acaba tomando conhecimento da propriedade do pai, levando-o a reivindicar posse do local abandonado. Na viagem de retorno para a sua cidade natal, Willie divide assento com Virgínia (Natalie Talmadge), por quem se apaixona. Sem saber que ela pertence à família Canfield, ele se hospeda na casa da moça, mas logo descobre que o patriarca e os irmãos da jovem farão de tudo para matá-lo em nome de uma briga secular entre clãs familiares.
As soluções formais encontradas pelo cineasta para resolver os impasses dramáticos são bem-vindas porque, testando os limites da obviedade, surpreendem pela agudeza em que concebem episódios que, embora ocupem um lugar-comum, são inesperados. O filme tem a ganhar ao fazer do lugar-comum a surpresa quando ninguém esperava por isso. O estabelecimento do conflito vem ocorrendo paulatinamente desde aquela sofrida e extensa viagem de carroça. Aliás, é uma longa cena cuja proposta é aproximar os pombinhos apaixonados e expor, como parte compositiva da cena, a paisagem local. Ali já se encontram cenas canônicas como a do lenhador atacando o transporte e igualmente no plano onde a carroça se quebra em duas partes, atrasando a viagem. Parece que tudo dá errado quando temos algum compromisso e o filme explora bem isso nesta cena. Outros momentos são emblemáticos, mas nenhum deles supera o corte final na cachoeira, situação cheia de acrobacias e comicidade, típico dessa comédia de início da década, como se observa em O Homem Mosca (Fred C. Newmeyer, Sam Taylor, 1923).
A montagem opera de maneira cômica e o que se vê na tela muitas vezes é uma piada ou uma trapaça em forma de imagem, por isso nos surpreende enormemente: a cena do cavalo vestido com saias é uma delas. Muitas vezes o ângulo faz parecer algo que não é – causando o riso espontâneo. Não creio, contudo, ser propriamente engraçado de todo, mas é inteiramente divertido porque lentamente se delineia uma espécie de epopeia desse personagem, seguida de constantes derrotas e peripécias. Se Keaton opta por não introduzir velocidade à forma de sua película – característica fundamental da comédia dos anos 20 – é porque ele resolve o problema do gênero cômico de outra maneira, isto é, com uma peripécia atrás da outra, forçando situações de obviedade e absurdo até que se tornem totalmente absurdas. O trabalho com o óbvio, aqui, é a sua principal arma.
Um exemplo disso a que me refiro é a resolução que oferece o cineasta para o destino de Willie. Ele está ameaçado de morte pela família Canfield, mas, ao mesmo tempo, está hospedado na casa do inimigo. Há um lema que rege a recepção dos Canfield em relação aos seus hóspedes: jamais destratar e ser sempre gentil enquanto estiverem sob o seu teto – mesmo a contrapelo. Sabendo disso, Willie cinicamente força uma permanência na casa do algoz, ficando sempre mais um pouco. É que da porta para fora ele estaria morto. E então vai ficando por tempo indeterminado, causando um desconforto divertido e um efeito de absurdo que só poderia dar certo quando uma situação de obviedade é colocada no limite do bom-senso, ultrapassando-o.
Faz-se, ainda, uma excelente mistura entre os gêneros. Embora o viés cômico seja o principal deles, Keaton passeia e testa a sua habilidade para o dramático e consegue trazer algo de muito bom para a psicologia dos personagens e sobretudo para o aprofundamento da trama. O conflito é bem delineado porque utiliza-se do dramático para o desenvolvimento consistente do enredo e da história, do suspense para as ações fílmicas e do cômico para a resolução dos nós estabelecidos ao longo da fita. É de fato uma miscelânea formalmente bem conduzida.
Numa película cheia de peripécias criativas e viciantes, Buster Keaton e John G. Blystone inventam um sistema próprio de situações tragicômicas que parecem ser inesgotáveis no percurso épico de seu personagem. Num estilo episódico e por meio de um storytelling na concepção mais exata da palavra, o cineasta infla a fórmula pastelão e caricatural de sua obra ao mesmo tempo em que, não limitado pelo gênero cômico, busca trabalhar o dramático no limiar entre a comédia e o drama. Produzido na chamada “era de ouro” do cinema de Keaton, esse filme propõe simplicidade no argumento e roteiro, mas em contrapartida evidencia um trabalho complexo de enredo e cinematografia. Conclui-se, sem muito esforço, que Buster Keaton domina de ponta a ponta, e com versatilidade, o seu exercício fílmico, encerrando-o num corte final cheio de graciosidade e cinismo, como teria de ser.
Nossa Hospitalidade (Our Hospitality, EUA, 1923)
Direção: Buster Keaton, John G. Blystone
Roteiro: Clyde Bruckman, Jean Havez, Joseph A. Mitchell
Elenco: Buster Keaton, Joe Roberts, Natalie Talmadge, Ralph Bushman, Craig Ward, Monte Collins, Joe Keaton, Jack Duffy, Kitty Bradbury, Jean Dumas, Edward Coxen, Tom London, Buster Keaton Jr., Erwin Connelly
Duração: 74 min.