- Há spoilers. Leiam, aqui, a crítica da temporada anterior.
A primeira temporada de Nossa Bandeira É a Morte, comédia romântica criada por David Jenkins que reinterpreta a vida de lendários piratas reais do século XVIII, com foco em Stede Bonnet, o Pirata Cavalheiro, e Edward Teach, o Barba Negra, respectivamente interpretados por Rhys Darby e Taika Waititi, foi uma das maiores surpresas do audiovisual de 2022, surpresa essa que aumentou quando sua improvável renovação foi anunciada. E, agora, algo como um ano e meio depois, eis que a segunda temporada é lançada com oito episódios, dois a menos que a inaugural, mas sem nenhum medo de mergulhar no coração da narrativa, que é o relacionamento amoroso homossexual entre os dois referidos famosos piratas históricos.
Na verdade, o segundo ano da série faz algo que não é muito comum na transição de uma temporada para outra, que é rejeitar a noção de que o cliffhanger deve ser resolvido e desfeito imediatamente. Muito ao contrário, Jenkins faz do cliffhanger – basicamente a dramática separação de Stede de Ed – toda a tônica da nova temporada, com os roteiros muito lentamente lidando com esse aspecto e mais lentamente ainda fazendo a narrativa dos protagonistas convergir novamente. E essa lentidão, que fique bem claro, não é um aspecto negativo, mas sim positivo, pois abre espaço para o sensacional elenco coadjuvante brilhar em duas frentes, uma com um Barba Negra enlouquecidamente autodestrutivo e violento com a tripulação e com suas vítimas de pilhagem no Revenge e outra com o Pirata Cavalheiro, agora na República Pirata (que realmente existiu em Nassau), fazendo de tudo para achar o amor de sua vida.
Diria que, nessa seara de coadjuvantes, o grande destaque vai para Con O’Neill como o também famoso e real imediato de Barba Negra Israel “Izzy” Hands que é ao mesmo tempo mentor e figura paterna para o capitão, nutrindo por ele um amor e um orgulho sem igual, mesmo que ele não saiba demonstrar isso. Todo o desenvolvimento de Izzy, nesta segunda temporada, resvala na tragédia, com o próprio Barba Negra, em seus devaneios violentos, atirando na perna do imediato que, ato contínuo, precisa ser cortada fora e sua própria luta contra a morte ser escondida do capitão por uma tripulação amedrontada e realmente traumatizada pelos abusos sofridos por todos ali. Chega a ser fascinante como os roteiros tratam de Izzy e como O’Neill acrescenta camadas ao seu personagem que, mesmo com aquela casca de durão, jamais deixa de transparecer o que sente por Ed.
Eu poderia falar de todos os demais coadjuvantes já conhecidos, mas isso tornaria a crítica muito longa e repetitiva. Acho importante apenas falar de Nathan Foad como Lucius Spriggs, o escriba do Revenge que fora arremessado do Revenge por Barba Negra para a morte certa, mas que sobrevive e acaba sendo achado no navio da pirata chinesa Zheng Yi Sao (Ruibo Qian) que também existiu e sobre a qual falarei mais adiante. Lucius é o retrato do estresse pós-traumático, do funcionário implacavelmente abusado por seu chefe que o teme e o odeia em medidas iguais a ponto de se fechar completamente em si mesmo. De maneira diferente da abordagem de Izzy, mas, em linhas gerais, com o mesmo objetivo, o de lutar e vencer o trauma, Lucius ganha um arco narrativo gratificante que o reúne mais uma vez com Black Pete (Matthew Maher), só que, agora, de maneira mais abertamente romântica, levando-os a até casar no final.
Na categoria de coadjuvantes inéditos, a inserção de Qian como a notória pirata Zheng Yi Sao, cuja história real é ainda mais inacreditável que a do Pirata Cavalheiro, pois ela não só teve sucessos em suas empreitadas ilegais, criando uma verdadeira frota de navios no Mar da China Meridional, como acabou negociando sua rendição e, mais tarde, sua libertação, para viver em paz até idade avançada (para a época), foi uma excelente ideia de Jenkins. Mesmo que ele tenha que “dobrar” a verdade, já que Sao jamais viajou para o Caribe, fato é que ela é tratada com toda a reverência do título pelo qual acabou conhecida, Rainha Pirata, além de Qian retratá-la como alguém de profunda inteligência estratégica. Sua imediata, Auntie (Anapela Polataivao) é outro achado e funciona como o equivalente de Izzy para Sao, só que com uma pegada infinitamente mais cômica. E, claro, vale lembrar do hilário episódio em que Stede e Ed vão parar no antiquário das ex-piratas e agora amantes em uma relação de amor e ódio Mary Read (Rachel House) e Anne “Annie” Bonny (Minnie Driver).
Só achei desnecessário à trama a criação do príncipe transformado em pirata – de forma semelhante a Stede – Richard “Ricky” Banes (Erroll Shand), que, depois de perder o nariz para Spanish Jackie (Leslie Jones, novamente maior que a vida e hilária), volta-se para o lado dos britânicos contra a pirataria. Afinal, todos os personagens mais relevantes da série são baseados em pessoas que realmente existiram e a inserção de um pirata criado exclusivamente para a série e, ainda por cima, com história parecida com a de Stede para criar um paralelismo antitético pareceu-me um pouco preguiçoso. Além disso, inserção do notório e particularmente violento pirata Ned Low (Bronson Pinchot), que sai à caça de Barba Negra por ele ter batido seu recorde de pilhagens consecutivas, foi uma ótima ideia mal aproveitada, já que o personagem poderia ter ganhado mais tempo para brilhar com sua vilania absoluta, ainda que sua morte pelas mãos de Stede ganhe as devidas consequências para notabilizar, na série, o Pirata Cavalheiro diante de seus pares.
Sei que não falei muito da dupla protagonista, mas não sei o que mais poderia escrever aqui que já não tivesse escrito na crítica da primeira temporada. Talvez apenas que a conexão e a química de Darby e Waititi sejam ainda maiores aqui, mesmo considerando que eles passam quase a metade da temporada separados. Darby e o jeito dândi que ele imprime ao seu Stede contrastando com o lado mais cruel que Waititi estabelece para seu Ed, com ambos quase que literalmente encontrando-se no meio do caminho, ou seja, com Stede finalmente tornando-se pirata e Ed finalmente entendendo que pirataria não é tudo, vale ouro. E isso sem contar com o capítulo em que Ed, às portas da morte, tem hilárias alucinações com o Capitão Benjamin “Ben” Hornigold (Mark Mitchinson) e com o próprio Stede como um “sereio”.
Nossa Bandeira É a Morte continua surpreendendo e, desta vez, por saber transitar da temporada inaugural para a segunda sem desfazer o cliffhanger de imediato, abrindo espaço para Stede e Ed separadamente e para o ótimo grupo de coadjuvantes antigos desabrocharem de vez, além de introduzir a Rainha Pirata de maneira triunfal a ponto de ela merecer um spin-off exclusivo contando sua história em seu país de origem. Agora é aguardar a anunciada terceira e última temporada dessa consistentemente surpreendente série!
Nossa Bandeira É a Morte – 2ª Temporada (Our Flag Means Death – EUA, de 05 a 26 de outubro de 2023)
Criação: David Jenkins
Direção: David Jenkins, Andrew DeYoung, Fernando Frías
Roteiro: David Jenkins, Alyssa Lane, Alex Sherman, Adam Stein, Eliza Jiménez Cossio, John Mahone, Simone Nathan, Zayre Ferrer, Jes Tom, Natalie Torres
Elenco: Rhys Darby, Taika Waititi, Ewen Bremner, Joel Fry, Samson Kayo, Nathan Foad, Vico Ortiz, Matthew Maher, Kristian Nairn, Con O’Neill, David Fane, Samba Schutte, Nat Faxon, Leslie Jones, Madeleine Sami, Ruibo Qian, Anapela Polataivao, Erroll Shand, Mark Mitchinson, Rachel House, Minnie Driver, Bronson Pinchot, Josie Whittlesey
Duração: 222 min. (8 episódios)