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Crítica | Nosferatu: O Vampiro da Noite

Uma excepcional narrativa vampiresca pelo viés de Werner Herzog.

por Leonardo Campos
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Em 1922, época das vanguardas europeias em efusão e disseminação mundial, o cineasta F. W. Murnau assumiu o comando de uma narrativa que se tornou referências para muitos tópicos temáticos no cinema. Nosferatu, tradução não autorizada do romance Drácula, do escritor irlandês Bram Stoker, publicado em 1897, foi uma narrativa que atravessou diversos problemas legais, faliu a produtora em seu primeiro filme, teve bastidores misteriosos que se tornaram a base para muitos mitos, além de ter se tornado um marco da estética expressionista. Devidamente restaurada para a manutenção deste icônico clássico da memória produtiva e criativa do século XX, a trama ganhou uma refilmagem em 1979, capitaneada por outro grande diretor do cinema alemão moderno, Werner Herzog, responsável por uma releitura que diferentemente de muitas retomadas, conseguiu estabelecer o padrão de qualidade dramática e estética, transformando a sua versão numa suntuosa radiografia da mitologia vampírica. Concebido numa década de esgotamento para o tema, haja vista as excessivas investidas da indústria cinematográfica diante do mais famoso conde vampiro do imaginário ocidental, o realizador entrega, nesta obra-prima, críticas sociais, horror sobrenatural e apuro estético.

Para os historiadores do cinema, o diretor é considerado como parte integrante do Cinema Novo Alemão, apesar do próprio não se considerar parte do movimento, mesmo que as suas posturas intelectuais reforcem o quão simpatizante é a sua trajetória com esta fase cinematográfica alemã. Conhecido por trabalhar constantemente com temáticas existenciais, Werner Herzog é um cineasta superlativo, experiente na tessitura audiovisual ficcional e documental. Polêmico e militante da causa artística, ele coleciona um panorama de filmes que não passam incólumes pelo olhar da crítica e do público que segue a sua trajetória. No final da década de 1970, aderiu ao perigoso jogo de releu corajosamente Nosferatu, o clássico absoluto do cinema expressionista, demonstrando toda a sua astúcia ao imprimir densidade e características atrativas para um arquétipo que, como já mencionado, tinha passado por excessos na época: o vampiro.

Numa sociedade dividida por classes e assolada por uma peste, o filme logo de abertura traz um manancial de imagens associadas ao grotesco, clima soturno, paisagens sombrias e ritmo macabro. Há um excepcional jogo de luzes e sombras, numa narrativa que é uma adaptação, mas também uma dedicada homenagem ao que foi proposto por Murnau e sua equipe na década de 1920. Acompanhamos Jonathan (Bruno Ganz), um corretor imobiliário casado com Lucy (Isabelle Adjani). Ele recebe uma incumbência que vai mudar para sempre a sua vida. O seu chefe, Renfield (Roland Topor) o comunica sobre o interesse do Conde Orlok, interpretado magistralmente por Klaus Kinski, de arranjar uma habitação na região onde atuam. Ao embarcar para a residência da aterrorizante figura, o corretor atravessa uma experiência tensa de horror, atenuada depois que o conde vê uma foto de sua esposa e fica totalmente obcecado.

No caminho, Jonathan é constantemente alertado sobre a maldição que domina a travessia que pretende fazer, mas como um homem racional, fincado no ceticismo, ele ignora os avisos e segue, pavimentando o seu caminho rumo ao sobrenatural. Atormentado por sua condição eterna, o antagonista aqui vive mergulhado na frustração por não ter a possibilidade de confrontar a morte e se entregar, o personagem de Kinski encara as coisas ao seu redor sem o valor que as mesmas possuem para os seres humanos mortais. Para piorar, a sua forma física é demasiadamente aterradora: seus olhos não piscam, suas unhas são enormes, sua pele de pálida e sua voz demoníaca o transformam num ser eternamente condenado. Por onde passa, o monstro traz a morte consigo, espalhando dor, medo e peste, aqui, representada pelos corpos amontoados e ratos, criaturas que causam ojeriza. Como no clássico, Jonathan se torna um prisioneiro e o conde segue sua trilha rumo à cidade, tendo em vista alcançar Lucy.

Sem focar apenas no tom sanguinário, os realizadores investem numa atmosfera gótica, da arquitetura aos elementos sonoros. O mal desolador é estabelecido pela eficiência dos setores responsáveis pela composição narrativa em Nosferatu, uma equipe competente. Na direção de fotografia, Jorg Schmidt Reitewein emprega muitos planos gerais contemplativos das paisagens da Tchecoslováquia e dos Países Baixos, espaço que serve de cenografia para muitos trechos do filme.  Suas tomadas longas são mantidas pela edição, ornamentadas por um tom fúnebre, quase hipnótico, numa poética do horror que ganhou diversas leituras psicanalíticas focadas na linha de Carl Jung. O design de produção, assinado por Henning von Gierke, investe na mencionada estética gótica, aqui sem manter ancoragem nos clichês, funcionando perfeitamente com os diálogos simples  curtos, inseridos nas cenas com tonalidades brancas, azuladas e esverdeadas, num festival de horror hipnótico.

A intensidade da trilha sonora, composta pela dupla Popol Vuh e Florian Fricke, colabora com o desenvolvimento do clima macabro ao longo dos 107 minutos deste clássico moderno que traz uma imagem repulsiva de Drácula, sem a sensualidade da Hammer ou de determinada faceta do vampiro interpretado posteriormente por Gary Oldman. Outro destaque estético está nos efeitos visuais e especiais, em especial, na maquiagem da artista japonesa Keiko Kruk, recurso que durava em média quatro horas para ficar pronto e deixava o ator Klaus Kinski constantemente impaciente, tamanho o ritmo do trabalho para conceber o vampiro tenebroso além de seu excelente desempenho dramático. Ademais, com o ator Walter Ladengast no papel conectado ao icônico Van Helsing, o filme reforça o discurso clássico sobre como o mal triunfa diante dos apelos da fé e da ciência, ganhando no final, numa consonância com o pessimismo e a crise de muitos ideais alemães da década de 1970. E, em linhas gerais, Nosferatu deve ser considerado como uma obra-prima do horror, eficientemente refilmada e com desenvolvimento acessível para público amplo, sem ser um daqueles filmes clássicos com proposta mais hermética. Ancorado numa mixagem entre duas atmosferas, isto é, pesadelo e realidade. Temos aqui uma experiência que trafega pela esfera do sublime e deve ser fazer parte de sua jornada cinéfila.

Nosferatu: O Vampiro da Noite (Nosferatu: Phantom der Nacht, Alemanha/França – 1979)
Direção: Werner Herzog
Roteiro: Werner Herzog
Elenco: Klaus Kinski, Isabelle Adjani, Bruno Ganz, Roland Topor, Walter Ladengast, Dan van Husen, Jan Groth, Carsten Bodinus, Martje Grohmann, Rijk de Gooyer
Duração: 107 min.

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