Qualquer retomada de uma narrativa clássica gera comoção do público, da crítica, dentre outros setores que engendram a cultura cinematográfica. Nosferatu, dirigido por Robert Eggers, também responsável por tecer o texto dramático, não é um filme para todos. Digo isso, caro leitor, porque diferentemente do tom frenético e do excesso de reviravoltas estabelecidas nas atuais histórias de terror, a perspectiva gótica contemplativa e o desenvolvimento dominado de alegorias do filme não sacolejam as plateias contemporâneas, em sua maioria, obcecadas por banhos de sangue, atos divididos por didatismo, ação quase sem interrupções e metáforas trocadas por comparações mais simplórias e objetivas. Refilmagem do clássico expressionista de F. W. Murnau, que por sua vez, era uma tradução não autorizada de Drácula, de Bram Stoker, para o suporte semiótico cinematográfico, essa versão de Eggers é uma corajosa empreitada artística, pois invade um território que possui aura específica. Em 1979, Werner Herzog também ousou, ao trazer um elenco e uma equipe de realizadores muito competentes para entregar ao público o seu olhar para esse enredo diabólico sobre obsessão, isolamento e inevitabilidade da morte.
Agora, em plena década de 2020, a decadência humana, a ojeriza diante da monstruosidade e a intensidade dos relacionamentos que, em muitas situações, ganham um dinamismo tóxico, podem ser as palavras-chave que definem mais uma aparição do Conde Orlok nas telas dos cinemas. Dessa vez, mais próximo do vampiro de Gary Oldman, dirigido por Coppola, mas com muitos traços de Max Schrek, orientado por Murnau em 1922. Lançado em 2024 no exterior e na lista dos principais lançamentos da primeira semana de 2025, Nosferatu é um filme grandioso. O elenco entrega desempenhos dramáticos espetaculares, as imagens são suntuosas, a trilha sonora de Robin Carolan, já adquirida e executada enquanto escrevo esse texto, é uma obra-prima da música instrumental contemporânea, numa história que em si traz um enredo simples, mas carregado de complexidade pelos desdobramentos interpretativos que nos permite estabelecer enquanto estamos assistindo, bem como a sua permanência em nossas mentes após o desfecho dessa versão que contabiliza 132 minutos de horror visual e psicológico em cena. Visceral na visualidade e febril em seu subtexto, eis um filme que traduz psicanaliticamente o conceito de pesadelo para imagens aterrorizantes sobre as erosões da condição humana.
A trama, amplamente conhecida, nos apresenta uma tradução livre da estrutura narrativa do romance epistolar de Bram Stoker. Ellen Hunter (Lily-Rose Depp), recém-casada com Thomas Hunter (Nicholas Hoult), acredita que a sua vida de traumas passados e turbulência onírica constante está caminhando para uma mudança positiva. Logo nos primeiros momentos, seu esposo é enviado pelo chefe para resolver uma questão contratual com o Conde Orlok (Bill Skarsgard), o “Nosferatu” da história, figura enigmática que vive numa zona distante, na Transilvânia, um lugar dominado por superstições e atmosfera nebulosa. Enquanto viaja para dar cabo da missão que supostamente mudará a situação social de suas vidas, Thomas vivencia momentos de incerteza, pesadelos muito estranhos, fincados com em sua realidade, além de atravessar condições macabras nunca antes experimentadas. As coisas ficam ainda mais intensas quando chega ao castelo do decrépito conde, um homem com voz gutural assustadora e aparência idem. Desse momento em diante, ele precisa batalhar pela sua sobrevivência e lidar com a obsessão do cliente que possui planos muito maiores que o imaginado. A propriedade que Orlok deseja não é exatamente uma mansão, mas a alma e a entrega de Ellen.
Enquanto isso, em paralelo, acompanhamos o adoecimento cada vez mais intenso da jovem esposa. Em conexão com os acontecimentos que dominam o cotidiano nos apresentado em elipses ao passo que o filme se desenvolve, a moça teme pela vida do marido, ao passo que começa a aceitar que talvez, para resolver de uma vez por todas as celeumas estabelecidas com o reinado de horror do vampiro, será preciso se sacrificar para salvar a todos. Infelizmente, antes de decidir o que será de seu desfecho, Ellen perde pessoas queridas que gravitam em torno de sua existência, em especial, a amiga Anna Harding (Emma Corrin), outra mulher resignada que a acompanhou durante a viagem do marido, sendo paciente com suas questões de saúde. Diferentemente de muitos filmes que seguem essa base temática, Nosferatu coloca em cena passagens com momentos de transe e possessão que emulam os melhores efeitos dos bons filmes na seara do exorcismo, entregando aos espectadores uma experiência crua de horror, com direito ao ataque contra duas crianças, ceifadas impiedosamente pelo monstro, num jogo de sombras mais assustador que uma passagem focada em ser explícita, dentre outras cenas angustiantes, num filme que pode ser definido como uma apaixonada homenagem ao terror.
Cinema, como qualquer manifestação artística, é contexto. Sabemos que os monstros espelham ansiedades e inseguranças de suas respectivas épocas. Xenofobia, a relação da humanidade com a ciência, os avanços tecnológicos e a ambiguidade da fé religiosa forraram o ambiente onde a versão expressionista de 1922 se deitou. Agora, Eggers e sua equipe pavimentam um caminho trilhado pelas questões que dominam os debates da nossa atual sociedade adoecida. Nosferatu versa sobre culpa, passa por questões acerca dos impactos do isolamento de toda “espécie”, além de dialogar com tópicos emblemáticos sobre os papeis de gênero. Longe de assumir uma postura panfletária e, consequentemente, histérica e desesperada, a narrativa prefere se apoiar num discurso onde olhares, ações e algumas linhas de diálogo, bem como os expressivos elementos estéticos que gravitam em torno dos personagens, emitem as suas mensagens e deixam o espectador navegar nas caudalosas e turbulentas águas das existências abissais de figuras ficcionais abaladas por suas existências conflituosas. Numa perspectiva de interpretação filosófica, essa acinzentada produção, fruto da eficiente direção de fotografia de Jaris Blachke, ambientada por uma inquietante e assombrosa atmosfera, possui muitos tons nietzschianos.
Ainda entre os destaques, temos uma participação menor, mas eficiente de William Dafoe como o Professor Albin von Franz, personagem que traz para as linhas de diálogos do roteiro, discussões panorâmicas sobre alquimia e crenças que permeavam o imaginário popular em 1836. Diversos nomes mencionados em Drácula, Frankenstein, dentre outros clássicos góticos, por aqui, enriquecem o texto com uma precisão histórica respeitosa, também a se desdobrar no desenvolvimento dos aspectos estéticos do filme. O design de produção de Craig Lathrop, com sua cenografia ogival e presença de outros recursos góticos assertivos, se mescla aos metais, sopros e cordas da já mencionada trilha de Carolan, nos permitindo mergulhar em uma jornada de horror com poucos precedentes no âmbito dos filmes do gênero na contemporaneidade. Os figurinos de Linda Muir, também bem delineados para a estruturação dos personagens diante de suas necessidades dramáticas e perfis social, físico e psicológico, reforçam a preocupação dos envolvidos em colocar o público para consumir uma história eficientemente costurada em todos os seus aspectos. Inspirada numa revista de moda do mesmo ano onde a narrativa se encontra situada, a figurinista conseguiu entregar o máximo de coesão em seu planejamento visual.
Outro ponto que merece destaque é o design de som. Confesso que apesar de funcionar, senti uma carga relativamente excessiva no tom de voz do Conde Orlok, nalguns momentos, muito excessivo em sua dinâmica de monstruosidade, atrapalhando trechos em que a sua fala não é a única em cena. Talvez tenha sido uma escolha proposital, tendo em vista nos reforçar que a sua ameaça diante dos pobres mortais é algo a provocar o silenciamento alheio. Fora isso, o setor utiliza ótimos recursos para nos conectar emocionalmente com o tom sombrio dessa história já contada anteriormente, mas que agora ganha novos contornos, em simbiose com os avanços tecnológicos que permitem novos experimentos estéticos para evolução da linguagem cinematográfica. Em sua estrutura, a trama é praticamente a mesma de 1922, com poucas mudanças, diferenciando-se mais na associação com o seu contexto. É uma nova época, algumas ansiedades e medos de antes predominam, agora em camadas adicionais de reflexões sociais, políticas e históricas. Ademais, Nosferatu é um reflexo do cinema de Robert Eggers, um dos mais proeminentes cineastas especializados no gênero terror na contemporaneidade.
Ele é um cineasta que rapidamente se destacou no cenário do cinema de terror, entregando histórias mais associadas ao que o público e a crítica consideram “cult”. Em seu estilo único e meticuloso, Nosferatu é talvez o mais “comercial” de seus filmes, se compararmos o desenvolvimento com A Bruxa e O Farol, por exemplo, tramas que também expõem características marcantes que se tornaram sua assinatura, tais como a imersão em contextos históricos, com a recriação de épocas passadas com uma precisão impressionante, a construção de atmosferas sombrias e opressivas, com narrativas que incorporam elementos de horror psicológico que vão além do susto momentâneo, tendo a tensão criada por meio da ambientação e da construção de personagens complexos que enfrentam seus próprios demônios. Para o filme em questão, analisado por aqui, o cineasta já possuía uma boa base de sustentação, desde os traços expressionistas de 1922 ao clima nebuloso da versão de 1979. Eggers é hábil em explorar o medo do desconhecido, utilizando a solidão e a natureza como ferramentas para aumentar a tensão, com filmes que muitas vezes deixam o espectador com uma sensação de inquietação duradoura, além da sessão na sala de cinema. Outro traço que merece ser delineado é a sua abordagem para temas interligados entre as palavras-chave loucura, obsessão e a fragilidade da mente humana. Seus personagens frequentemente se debatem com suas próprias limitações e medos, refletindo uma busca por significado em um mundo hostil. É assim que acompanhamos a jornada de horror do casal Thomas e Ellen, numa Alemanha nublada e opressiva.
Um filme para ser contemplado. E que, segundo dados da mídia, tem alcançado expressivos resultados nas bilheterias e um bom magnetismo com a crítica especializada.
Nosferatu (Idem, Alemanha/França – 2024)
Direção: Robert Eggers
Roteiro: Robert Eggers, Henrik Galeen (inspirado no romance de Bram Stoker)
Elenco: Bill Skarsgård, Nicholas Hoult, Lily-Rose Depp, Aaron Taylor-Johnson, Emma Corrin, Ralph Ineson, Simon McBurney, Willem Dafoe
Duração: 107 min.