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Crítica | Nós Vendemos Nossas Almas, de Grady Hendrix

O que somos capazes de fazer pelo sucesso?

por Ritter Fan
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Isto É Spinal Tap é, provavelmente, a melhor crítica satírica audiovisual da Indústria da Música, mais especificamente da mitologia que gravita ao redor das bandas de heavy metal, um filme maravilhoso não apenas por seu humor, mas também pela realidade das histórias que aborda em uma espécie de amálgama dos dramas por que passam e passaram grandes nomes da música. Nós Vendemos Nossas Almas é, em espírito, exatamente a mesma coisa, só que na forma literária e deixando o humor de lado e focando no drama de horror, especialidade de Grady Hendrix, autor de Horrorstör e de O Exorcismo da Minha Melhor Amiga.

Uma das obras mais maduras e completas do autor, a história lida com Kris Pulaski, uma ex-guitarrista e ex-compositora musical da Dürt Würk (uma brincadeira com dirty work ou, em tradução direta, “trabalho sujo”), banda de garagem de heavy metal que, quando alcançou um mínimo de sucesso, foi desfeita da noite para o dia, com apenas um de seus membros, o vocalista Terry Hunt seguindo uma incrivelmente veloz e bem-sucedida carreira solo na banda Koffin (alteração de coffin ou “caixão). No entanto, no lugar de abordar uma Kris jovem, em começo de carreira, Hendrix faz o inesperado e nos apresenta à personagem beirando os 50 anos, trabalhando como recepcionista noturna em um hotel Best Western de beira de estrada tendo que limpar vômito de hóspede bêbado e outras tarefas terríveis como essa e é isso que é o coração de seu romance.

A relação de Kris com a música era umbilical, com sessões autodidatas de guitarra no porão de sua casa até que conheceu Terry e, os dois, dividindo a mesma apreciação por bandas de heavy metal, ergueram o Dürt Würk. Mas, 20 anos depois, Kris é uma sombra do que fora, uma mulher desgostosa que vive a vida no automático, por vezes lembrando do que poderia ter sido se tivesse seguido sua carreira musical. Tudo isso muda quando ela se depara com um outdoor que anuncia uma série de shows do Koffin indicados como sendo os últimos da triunfal carreira de seu ex-amigo Terry Hunt. Kris acorda de seu torpor e decide enfrentar seu passado, iniciando uma fascinante versão urbana e musical de uma jornada tolkeniana para Mordor que a leva a descobertas assombrosas sobre o que realmente aconteceu com sua banda e o que está prestes a acontecer com o mundo, em uma estrutura narrativa que bebe sem pudor das lendas urbanas que cercavam e ainda cercam algumas bandas de rock.

Seu caminho a leva aos demais membros de sua banda e a uma armadilha cuja fuga se dá em uma surpreendentemente bem construída sequência em que ela tem que desesperadamente se arrastar por uma caverna, aos poucos ganhando consciência da dimensão de sua tragédia, com paralelos evidentes com seu estado de espírito e, principalmente, mental, com o autor jogando muito bem com a percepção de realidade de Kris, o que ajuda a fazer com que o leitor duvide de cada passo descrito na narração em terceira pessoa. Nesse processo, Kris precisa lutar contra toda sorte de preconceitos, seja por ser mulher, seja por ser “velha”, seja pela percepção de que o que ela sente, no fundo, é uma inveja mortal de seu colega de sucesso, o que acaba fazendo com que as paredes se fechem ao seu redor de maneira desesperadora.

A música é onipresente no romance, mas não da maneira básica que Hendrix fez em O Exorcismo da Minha Melhor Amiga, usando canções dos anos 80 e 90 para batizar os títulos de seus capítulos ou referenciando cantores e cantoras pop da época. Aqui, o autor vai além das pequenas referências inferidas e expressas a bandas de rock dos anos 70 e 80 que inspiraram e inspiram Kris. Em Nós Vendemos Nossas Almas, ele constrói uma mitologia perfeitamente crível para a Dürt Würk, inclusive e especialmente no que se refere ao álbum que eles jamais lançaram em razão da separação, criando um mistério muito que vai aos poucos sendo descortinado, com direito às letras das canções que compõem o tal disco deixado no passado da protagonista e que leva a um momento climático realmente emocionante.

Assim como em todos os seus livros, a história de horror que Grady Hendrix cria, em si, é básica, não particularmente inspirada. Mas isso é porque, apesar de ele escrever em grande parte para esse gênero literário, sua preocupação está no lado humano da narrativa, com o horror servindo apenas para refletir o estado de espírito de seus personagens. A razão pela qual a Dürt Würk acabou é bem menos importante do que Kris Pulaski faz, a um custo pessoal altíssimo, para encontrar paz interior e chegar a algum tipo de conclusão definitiva sobre um caminho que lhe foi tão abruptamente retirado de seu limitado leque de opções. No entanto, aqui, a mitologia de horror consegue ser mais completa e mais interessante do que em seus livros anteriores, ainda que o drama e a jornada de Kris sejam os elementos de real destaque na obra.

Nós Vendemos Nossas Almas (minha tradução direta do título original já que o livro não foi publicado no Brasil até o lançamento da presente crítica) é uma ode ao amor pela música e uma severa crítica ao preço que o sucesso cobra e à desalmada indústria musical. É uma obra para amantes de rock, mas não exclusivamente para eles, pois os amantes de livros de horror e também de alta fantasia tolkeniana igualmente saberão apreciar o que Grady Hendrix construiu aqui.

Nós Vendemos Nossas Almas (We Sold Our Souls – EUA, 2018)
Autor: Grady Hendrix
Editora original: Quirk Books
Data original de publicação: 18 de setembro de 2018
Páginas: 337

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