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Crítica | Nós Matamos o Cão Tinhoso!, de Luís Bernardo Honwana

Um clássico da literatura moçambicana.

por Luiz Santiago
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Moçambique só se tornou livre de Portugal em meados de 1975, após quase dez anos de guerra de independência. Em abril de 1974, a Revolução dos Cravos pôs fim à ditadura em Portugal e o reajuste político do país a partir de então acabaria com a retirada dos militares portugueses das terras invadidas e entregaria essas colônias aos movimentos de independência. Como era de se esperar, a literatura nacional olhava de maneira constante para estes conflitos, criticando os colonos de diversas formas e colocando em diversas vozes gritos horror, dor e liberdade, como os que vemos neste conto de Luís Bernardo Honwana, publicado em 1964: Nós Matamos o Cão Tinhoso!.

A obra faz parte de uma coletânea de 7 contos, sendo os outros seis Dina; Papa, Cobra, Eu; As Mãos dos Pretos, Inventário de Imóveis e Jacentes, A Velhota e Nhinguitimo. Na publicação brasileira realizada pela Editora Kapulana em 2017, há também um conto do autor nunca antes publicado em livro, Rosita, Até Morrer. Tendo sido militante da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), Honwana irá imprimir em sua obra um tom de dominação, opressão, relação de forças desiguais e tudo isso marcado por uma imensa capacidade de evocação de imagens fortes e sentimentais numa narrativa objetiva e exposta em pequenos ciclos, muitas vezes denotando uma perturbação do narrador ao retornar a determinados termos, situação que muitas vezes também é a do leitor.

O autor começa a história de um modo que já nos dá muito do que precisamos saber sobre esse cão infeliz e sarnento que vagueia por uma escola e suas redondezas, local onde estuda e vive o narrador, um menino negro chamado Ginho. Ele diz que “O Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum, mas eram enormes e estavam sempre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho. Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer.“. Rapidamente o leitor monta a imagem do pobre animal e consegue facilmente visualizar a relação que as pessoas (e os outros cães também, conforme narrado) tinham para com o segregado. A repetição sobre o seu aspecto, com as feridas que dão nojo e a maneira como ninguém queria passar a mão no bicho — exceto a Isaura, que “não batia muito bem” — nos dá a clara visão de repulsa e começa a acender algumas linhas de interpretação.

Em muitos sentidos, Nós Matamos o Cão Tinhoso! é uma obra que questiona ao mesmo tempo que não deixa passar a convivência entre diferentes camadas sociais e étnicas, podendo cada criança e adulto visto na obra representar um tipo específico de status nossa sociedade. Estão aqui os pretos nativos, os bracos, os mestiços; os que tem mais ou menos dinheiro; os que tem mais ou menos coragem; os que usam os mais fracos para conseguirem dar cabo de um trabalho sujo; os compassivos e os indiferentes com a dor alheia; os que falam e os que escutam. A oralidade, inclusive, é um ponto de destaque forte aqui, especialmente quando diz respeito ao cão tinhoso, com o mitológico passado de ter “fugido da guerra, da bomba atômica e por isso tem tantas feridas“.

E é ao longo dos dias que o leitor percebe que o mesmo tratamento de escanteamento, xingamento e nojo em relação ao cão vai pouco a pouco aparecendo no tratamento entre as pessoas e tem sua maior demonstração na figura assustadoramente opressiva de Quim em relação a Ginho, mas que se estende a qualquer outra figura negra — e de modo ainda pior, já que Ginho tem o ‘privilégio’ de ser assimilado à malta de meninos brancos. Ainda depois de todo o perrengue armado no mato (um dos momentos mais angustiantes e brilhantemente escritos do conto) Quim tem a coragem de falar a Ginho e pedir-lhe a cópia de resultados dos problemas da aula em troca de um desenho. O importante aqui é destacar que as crianças e adolescentes do conto não são, no sentido comum dos termos, bons e maus. O autor não cai na armadilha de criar grandes forças absolutas de salvação e perdição. Ele trabalha com construções sociais expostas na fala e principalmente com exploração dos sentimentos de cada um, dizendo muito sobre quem esses garotos são nesse momento de suas vidas.

O cão tinhoso serve de figura para o regime colonial apodrecido, nojento; mas também traz a imagem do negro africano visto da mesma forma, e que por incomodar demais (lembremos do período em que o conto foi escrito), precisa ser morto. Aqui, a ação descrita no título serve como um choque de amadurecimento para os meninos e para a Isaura, que tanto zelou pelo bicho. Um rito de passagem armado, contra uma vida e a mando de terceiros. Certamente o produto de um tempo de guerra e que esclarece a forma como aquele período moldava mentalidades, expunha verdades sociais e criava a figura de um cão tinhoso histórico, que em breve entraria para os livros como vítimas da guerra, sendo seus algozes perdoados porque só estavam ali, de armas em punho, a mando de uma autoridade maior. No fim das contas, as ordens para o massacre se perdem, viram ecos. Os mortos, viram história. E seus descendentes, seguem convidados a trocar resolução de problemas por desenhos…

Nós Matamos o Cão Tinhoso! (Moçambique, 1964)
Editora original: Afrontamento
No Brasil: Editora Kapulana (Série Vozes da África)
Autor: Luís Bernardo Honwana
33 páginas

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