Apesar de ser uma festividade para encontros, troca de presentes e momentos de alegria e descontração com aqueles as pessoas que amamos e são parte de nosso círculo diário de socialização, ao menos, segundo a base do que a nossa sociedade apregoa sobre o período, o Natal também pode ser uma passagem dolorosa para muitas pessoas. É o momento da dor da saudade diante daqueles que já se foram, os encontros obrigatórios com indivíduos desagradáveis que fazem parte do nosso seio familiar, ou então, uma comemoração patrona da solidão. Há muita ambivalência nos significados deste momento de nosso calendário, geralmente conhecido por suas luzes vibrantes, árvores decoradas, dentre outros elementos que compõem o que chamo de design de produção natalino. Para alguns, por sua vez, é uma época trevosa, de ansiedade e angústia, algo que podemos vislumbrar no tom trágico do conto Noite de Natal, da escritora portuguesa Maria Judite de Carvalho. Aqui, não temos a correria de Dasdores para deixar o presépio pronto, como no conto Presépio, de Carlos Drummond de Andrade, tampouco as peripécias fantásticas de Maria das Dores, ao descobrir que está grávida por um meio imaculado, como na curiosa jornada de Via Crucis, de Clarice Lispector.
O tom do conto está mais próximo da nebulosa noite da personagem de Lygia Fagundes Telles em Natal na Barca, uma experiência humana envolvendo alteridade e tons trágicos. Narrado em 3ª pessoa, acompanhamos uma noite onde a alegria está bastante longínqua. O tom é sombrio, fúnebre, com elementos noturnos que prenunciam as tensões que transformarão a noite das personagens. O foco é a relação entre Emília e Dores, filha e mãe, respectivamente, inseridas dentro de um contexto familiar destrutivo. Ninguém se conecta naquele espaço e a presença do pai alcoólatra só faz as coisas piorarem. Sem nome, o personagem que representa a violência patriarcal no conto é o desagrado em forma humana. Com ele em casa, não faz sentido algum para estas mulheres montarem o presépio ou decorarem uma árvore de Natal. Deslocada, a família deseja se organizar o máximo que pode para sair de casa. Seu desejo é casar-se com Joaquim, o namorado, com quem pretende viver uma vida mais sossegada.
Ela considera a mãe chata, implicante, fria. Já o pai ela abomina e despreza. Na noite do festejo, o pai decide ir para um bar. Quebra a lógica sagrada do período e adentra pelo profano. Ao voltar para casa, bêbado, agride a sua mãe que clama por socorro. Antes de uma tragédia se evidenciar, a jovem aniquila o pai com um golpe na cabeça. Pronto. O cenário ambivalente se estabelece: as duas se libertaram das dores causadas pelo homem, mas agora compartilham um segredo que muda para sempre as suas trajetórias nesta vida. O Natal, neste ambiente, nunca será o mesmo. Cessam as saídas: ida ao mercado, os encontros com amigos e familiares, a visita ao espaço sacro da igreja. Emília e Dores se fecham em si, mas ao mesmo tempo, começam a se compreender melhor, dividindo um acontecimento que demarca uma mudança na forma como uma observa e dialoga com a outra. É tudo trágico e, exponencialmente, emocionante.
Com a morte dos pais, acabam os xingamentos e a violência assustadora. A consciência cristã, ironizada como hipócrita no conto semeia uma crise na vida das personagens. Cura-se de uma dor e de certa maneira, potencializa-se outra. Tomadas pela cumplicidade, ambas partem para uma jornada de autoconhecimento, neste conto que versa sobre anulação, culpa, dor, trauma, subalternidade da mulher diante do patriarcalismo violento, bem como os relacionamentos artificiais que se constroem em nossas redes cotidianas, aqui interessantemente desenvolvidos numa história sobre o Natal, algo que em tese, é a reversão disso tudo. A rispidez do ambiente tradicional onde habitam tais personagens, construindo por meio de uma atmosférica escrita, promove uma vinculação do leitor em constante espaço de suspensão, no aguardo do pior que está por vir deste conto publicado em Tanta Gente, Mariana, em 1988.
De volta ao comparativo com a tessitura literária natalina de Lygia Fagundes Telles, em Noite de Natal, acompanhamos uma jornada que evidencia situações interpessoais das personagens que mudam para sempre as suas vidas. No conto de Maria Judite de Carvalho, por sua vez, o tom adotado é mais próximo do trágico, responsável por fincar as dores de um trauma na vida destas mulheres que batalham pela mencionada liberdade, mas se encontram aprisionadas pela subjetividade da culpa. É uma reversão do Natal tal como se convencionou definir a festividade: a mesa farta, os lindos presentes, as brincadeiras do amigo secreto, a chegada do tio do pavê, dentre outras situações, ficam de lado, para nos apresentar a pavimentação de um doloroso caminho envolvendo as alteridades das personagens centrais. Com alguma experiência em reflexões sobre o período natalino no âmbito ficcional, posso delinear tranquilamente para o leitor que este é um dos contos mais poderosos sobre a temática. Funciona como reflexão, empolga enquanto diletantismo e promove um envolvimento entre leitor e texto com muita eficiência.
Que todos possamos, à medida do possível, gozar dos privilégios de um Natal melhor que o destas personagens.
Noite de Natal (Portugal, 1988)
Autor: Maria Judite de Carvalho
Editora original: Errata Naturaes
3 páginas