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Crítica | No Silêncio da Noite

por Gabriel Carvalho
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“Eu nasci quando ela me beijou. Eu morri quando ela me deixou. Eu vivi por algumas semanas enquanto ela me amou.”

Dada a sua suspeita acerca de seu namorado ter ou não assassinado a jovem Mildred Atkinson (Martha Stewart), Laurel (Gloria Grahame) confessa para sua amiga Sylvia (Jeff Donnell) os seus temores, tendo, porém, a intenção que, ditos, eles fossem descartados como absurdos. “Eu vim aqui porque queria dizer essas coisas em voz alta e ser motivo de riso, mas você não está rindo“, conclui a personagem na conversa. Somente nos seus sonhos, quando, já na cena seguinte, revive essas suas preocupações enquanto dorme, que a mulher pode gargalhar e, portanto, mergulhar em um amor incontestável, no campo do eterno e da mentira, que não é questionado pela realidade, essa, por sua vez, cheia de obstáculos, no campo da efemeridade. Ora, como não ser passageiro um relacionamento nascido diante de um assassinato, que é catapultado pelo encontro de dois estranhos em uma delegacia para responderem perguntas da polícia, sem que o princípio seja romântico, mas, pelo contrário, macabro? Ao mesmo tempo, como também não ser verdadeiro, embora complexo e contraditório, o amor entre Laurel Gray e Dix Steele (Humphrey Bogart), dado o belo texto que os atores interpretam, em vista de um jogo de seduções e declarações, por mais que, derradeiramente, esse relacionamento esteja destinado a um fim.  

É com esse espírito trágico-romântico, em que a ascensão do amor é paralela a sua derrocada, que o cineasta Nicholas Ray encaminha o primeiro beijo entre Dix Steele e Laurel Gray, no qual a mulher se entrega apaixonada ao roteirista, para que, de modo gradual, a personagem passe a deixar de se sentir pertencida em meio aos braços de seu amante. Em No Silêncio da Noite, a encenação do par é progressivamente transformada, para que a relação dos corpos, da troca de carícias e da proximidade entre eles, perca a paixão, com o medo e o desconforto ganhando lugar. Nesse beijo inicial, enquanto as mãos no pescoço de Laurel, justamente em um ângulo que realça que a personagem encontra-se à mercê de Dix, não expressam receio, mas entrega, um mero ato de se colocar os braços ao redor da mulher, em uma cena posterior dos dois em um carro, redefine completamente o ideal de pertencimento que existia antes na relação. O toque é cada vez mais embriagado pela violência, que emerge da personalidade de machão destemperado de Steele, e é catalisada pela desconfiança de Laurel, personagem que, em questão de pouco tempo que os dois se conhecem, já é descrita por Dix como uma desistente, porque prefere não se arriscar a pagar as consequências de uma crença irrevogável.  

Esses personagens, ainda que possuam inúmeras nuances, não são exatamente misteriosos, como se os seus traços escondessem alguma verdade vergonhosa ou, mais que isso, fossem consequências da obra os construindo. Ora, em poucos minutos, o protagonista já entra numa briga. Eles passam, portanto, por exaltações de certas características suas, como é o caso de Dix e sua violência, Laurel e sua desconfiança e do agente Mel (Art Smith) e sua lealdade, mas todo agravamento desses aspectos já é prenunciado desde o início do longa. A exemplo, sendo o amigo mais próximo de Dix, Mel, quando o assassinato da garota vem à tona, e o nome de Steele é relacionado a ela, se não acha que Dix é necessariamente inocente no caso, não o julga, mas logo pensa em possibilidades para o roteirista escapar da prisão. Em cenas posteriores, essa relação apenas será condicionada a novos limites, sempre inevitáveis. Ray, na verdade, coloca na própria figura de Steele uma grande capacidade de desvendar as pessoas ao seu redor rapidamente, o que acontece tanto no caso citado de Laurel, quanto no encontro dele com o ex-namorado da jovem morta. Logo, o cineasta não está propondo personagens mutáveis, no entanto, que são determinados pelas suas características e mantém-se fiéis a elas.  

Assim sendo, o trágico no longa surge de um caminho traçado pelo acaso, em que não só resoluções ruins acontecem – pelo menos, no que se refere às tramas paralelas, acerca da procura pelo assassino e a confecção de um roteiro -, contudo, em que, independentemente, a derradeira conclusão pessimista é inerente à trajetória percorrida, seja qual fosse. Laurel, ora, nunca poderia viver com medo constante, pois não é essa a personagem de Ray, e essa não é uma obra em que ele a corromperá. Logo, uma cena como a do pedido de casamento torna-se uma cena de terror, com os olhos de Gloria Grahame à beira do pânico, pois sua percepção em relação ao seu namorado mudou, da certeza da inocência para a dúvida, justo por conta da permanência de seu traço de mulher moderna questionadora. Por que as mãos firmes de Dix nos braços de Laurel são, agora, marcas de violência, ao passo que, antes, suas mãos em seu pescoço eram sinal de paixão? Esse medo, além do mais, pode, por um lado, até ser em sua maior parte consequência da condição da origem da relação e da insistência dos policiais de que Dix teria conexão com o crime, mas, por outro, a sua violência é capaz de amedrontar e ser indagada sem importar de fato o assassinato, a investigação e o extremo alcançado no clímax da obra.  

Sem o assassinato, quiçá o agressivo comportamento de Steele não afugentasse Laurel, eles pudessem, em seguida, superar esse aspecto problemático do caráter do roteirista, e, em meio a essas condições, o amor de Gray pelo personagem de Bogart o transformasse. Contudo, isso mora no campo da imaginação, como naquele sonho de Laurel. Caso não houvesse o assassinato, os dois não teriam se conhecido e não teriam se amado. E, se tivessem, Dix seria outro homem, ou a mesma máquina de violência criada na guerra, que tão banalizou a morte para ele que o tornou alguém incapaz de reagir ao anúncio de um assassinato, senão com apatia? Para Nicholas Ray, o amor se torna realidade, assim sendo, justamente no campo da efemeridade, em uma dimensão de interrogações sobre “e se“, que não passam, no entanto, de ilusões. O que é verdadeiro há de ser passageiro. Se há, por um lado, a lógica traiçoeira de um homem violento, capaz ou não de assassinar outro alguém, e, por outro, da moça que, racionalmente, prefere escapar de uma relação antes que se machuque nela, existe também a paixão entre duas pessoas que nascem quando se beijam, morrem quando se deixam e vivem o tempo em que se amam, apenas para que, depois de tudo isso, retornem as suas respectivas solidões.

No Silêncio da Noite (In a Lonely Night) – EUA, 1950
Direção: Nicholas Ray
Roteiro: Dorothy B. Hughes, Andrew Solt
Elenco: Humphrey Bogart, Gloria Grahame, Frank Lovejoy, Carl Benton Reid, Art Smith, Jeff Donnell, Martha Stewart, Robert Warwick
Duração: 94 min.

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