- Há spoilers. Mas o filme é baseado em fatos reais.
É acridoce constatar, hoje, poucos dias depois de seu trágico falecimento, que o primeiro papel de Chadwick Boseman no cinema – uma relevante ponta com falas de poucos minutos somente ao final do longa que serve para reafirmar a sensação de legado – deu-se em um filme sobre um esportista que contribuiu tremendamente para a representatividade dos afro-descendentes no cenário da América ainda marcada pelo racismo, influenciando gerações, e que faleceu muito novo vítima de câncer, já uma estrela, mas sem realmente atingir todo seu potencial. Os paralelos entre a curta e meteórica carreira do jogador de futebol americano Ernie Davis, o primeiro negro a ganhar o cobiçado troféu Heisman, e a de Boseman tornam No Limite – A História de Ernie Davis quase que uma profecia, emprestando mais uma triste camada à obra dirigida por Gary Fleder.
Felizmente, esse début de Boseman nos cinemas tem mais a oferecer do que apenas um lembrete doloroso de seu falecimento a destempo. Afinal, os “filmes de esporte” que Hollywood solta com alguma constância formam um gênero em si mesmos e geralmente resultam em obras com mensagens edificantes, mesmo que o espectador porventura não se interesse por esportes em geral ou pelo esporte objeto do longa em particular. No Limite não é diferente ao lidar com a ascensão de Ernie, vivido quando criança por Justin Martin e quando adulto por Rob Brown, de um garoto com o mesmo tipo de futuro que todos os negros americanos da época tinham para uma estrela do futebol universitário que levou seu time, da Universidade de Syracuse, à vitória inédita no Cotton Ball.
O roteiro de Charles Leavitt, baseado em romance biográfico de Robert Gallagher, publicado originalmente em 1983, faz o que precisa fazer para lidar com aquilo que é mais relevante: a discriminação racial nos EUA durante a vigência das leis segregacionistas de Jim Crow e como a insistência de Ernie foi cavando seu espaço como um símbolo de sua época para crianças e jovens de mesma ascendência racial. Com isso em mente, Leavitt, estabelece desde cedo as habilidades de Ernie, não perdendo tempo com treinamentos ou momentos de superação física. Ele é, já do início, um esportista perfeito e não só em futebol americano. Essa escolha permite mais tempo para que o filme trabalhe quase que exclusivamente o preconceito, algo que o jogador enfrenta a literalmente cada passo que dá, seja sentido-se um peixe fora d’água na universidade mais do que predominantemente branca, seja lidando com preconceito dentro de seu próprio time.
A direção de Fleder não é particularmente inovadora ou fora de série, mas ela nem precisa ser. Esse é um daqueles filmes que a história fala por si mesma, tanto que o cineasta até se diverte em cutucar as jogadas complexas inventadas pelo treinador Ben Schwartzwalder (Dennis Quaid) como algo que só alguém muito conhecedor do esporte poderia realmente entender, usando cortes propositalmente exagerados e um vai-e-vem narrativo que quase que serve de alívio cômico em determinada altura da carreira de Ernie.
A chave do longa é mostrar de maneira quase que completamente didática – odeio didatismo, mas, aqui, ele vem para bem – a relevância da representatividade para minorias. Até hoje muitos não entendem o que significa Chadwick Boseman ter protagonizado um super-herói negro em um filme com elenco predominantemente negro que se passa quase que integralmente na África. A inspiração para jovens marginalizados por uma sociedade injusta que é capaz de alijá-los de toda sorte de chance na vida, criando obstáculos a cada metro que andam, é algo que simplesmente não tem preço e não há como medir. Ernie, personagem que se beneficia demais de uma atuação elegante, honesta e sensível de Rob Brown, foi inspirado por Jackie Robinson, o primeiro jogador negro da liga principal de beisebol nos EUA (e que seria vivido por Boseman cinco anos depois) e por Jim Brown (Darrin Dewitt Henson) jogador da mesma universidade, tornando-se ele mesmo um símbolo para as gerações futuras.
Esse é o grande triunfo do filme. As sequências de futebol americano, apesar de bem coreografadas, são desimportantes perto da mensagem da obra e ela precisa ser capturada e entendida de uma vez por todas, sem que olhos sejam revirados e sem que a palavra imbecil que virou moda por aí – a tal de “lacração” – seja dita como uma bandeira dos “não sou preconceituoso, mas….”. O papel de Dennis Quais, aliás, funciona muito bem para aprofundar essa explicação e para entender o tipo de racismo que sequer detectamos como racismo. O ator está também muito bem em seu papel como um homem que, sob a desculpa de só se interessar em vitórias, não quer enxergar o que retirar Ernie de jogadas importantes significa para aqueles que olham para o jovem com olhares esperançosos. Não vê que Ernie é a resposta silenciosa – mas dolorosa – para os idiotas racistas que acham que um ser humano de cor de pele escura é inferior por causa de sua cor de pele e defendem esses “ideal” como se sobrevivência da raça branca tão coitadinha, injustiçada e demonizada dependesse dessa definição.
Então sim, No Limite – A História de Ernie Davis não se envergonha de usar expedientes didáticos para tornar bem clara sua lição de moral, sacrificando até mesmo o futebol americano para alcançar esse objetivo. Fleder e Leavitt – usando Brown e Quaid como ótimos veículos – tornam impossível olhar para o lado e descartar o que assistimos como algo de um passado remoto que não volta mais. Não volta mesmo, pois esse passado nunca foi embora. E não, não é só nos Estados Unidos.
No Limite – A História de Ernie Davis (The Express, EUA/Alemanha – 2008)
Direção: Gary Fleder
Roteiro: Charles Leavitt (baseado em romance de Robert Gallagher)
Elenco: Rob Brown, Dennis Quaid, Omar Benson Miller, Aunjanue Ellis, Clancy Brown, Darrin Dewitt Henson, Saul Rubinek, Nelsan Ellis, Charles S. Dutton, Geoff Stults, Evan Jones, Nicole Beharie, Chelcie Ross, Enver Gjokaj, Maximilian Osinski, Justin Martin, Chadwick Boseman
Duração: 130 min.