Uma história de vingança com ninjas não precisa de quase nada para ser um descerebrado, mas legitimamente divertido desfile de pancadaria repleta de instrumentos cortantes, trajes bacanas, membros decepados, cabeças rolando e jorros de sangue. E isso poderia facilmente acontecer em um cenário de época, atual ou futurista, bastando um roteiro minimamente sólido e um nível baixo de invencionices idiotizantes. Infelizmente, porém, a primeira temporada do anime Ninja Kamui é um desastre quase completo que não consegue sequer ser uma diversão imbecil, sendo muito mais uma irritação cretina que usa shinobi apenas como chamativo para o que é essencialmente uma cansada e repetitiva guerra entre mechas (ou variações bem menos inspiradas do Homem de Ferro, só que com espadas no lugar de repulsores).
Mas esqueçamos por um momento que Ninja Kamui de ninja não tem nada e vamos à vaca fria: a série, mesmo que a consideremos como um mero exercício de pancadaria entre seres metálicos em uma ambientação altamente tecnológica em que a organização milenar japonesa parte, sob comando de um ninja mais experiente, barbudo e caolho, para dominar o mundo por meio da AUZA, o equivalente a uma Apple da vida que tem até mesmo seu próprio e completamente insano Steve Jobs, o que temos é uma animação pobre, repetitiva, ininteligível graças à montagem de milissegundos e que se acha séria e “adultona” só porque tem sangue aos borbotões, ainda que muito menos do que até eu esperava. Trata-se de um quase completo desperdício de premissa básica, que é a vingança empreendida pelo ninja renegado Higan (Jeremy Gee na versão em inglês) depois que sua esposa (também uma ninja renegada) e seu filho pequeno são mortos pela organização ninja a que pertencia, com a inicialmente hesitante ajuda do agente veterano do FBI Mike Moriss (Shawn Hamilton) e sua jovem assistente Emma Samanda (Luci Christian).
Fica a impressão que alguém da produção achou que só vingança e muitas mortes causadas por espadas era insuficiente para chamar atenção do público em geral e partiu para preencher os espaços vazios da série com “dominação do mundo”, “corporações malignas”, “armaduras que ganham upgrade“, “poderes místicos” e um interminável dramalhão novelesco sobre como Higan era feliz com sua esposa e filho e como a perda deles fez com que ele revertesse à máquina de matar que era antes ou, basicamente, a tal “força do amor”. Esses elementos, vale dizer, não são, por si só, problemas. São clichês, sem dúvida, mas não problemas, pois clichês fazem parte do jogo do audiovisual e o que importa é como eles são usados e desenvolvidos. Em Ninja Kamui, sinto dizer, todo clichê é usado da maneira mais porca e rasteira possível, demonstrando uma preguiça enorme em investir em algo realmente decente se a ideia era fazer algo mais complexo do que “meu nome é Hirai, você matou minha família, prepare-se para morrer“. Bastava inspirar-se na escola da franquia John Wick e de tantas outras obras anteriores que, por sua vez, inspiraram John Wick, e Ninja Kamui seria bem melhor ou, pelo menos, uma série minimamente passável, talvez até boa.
Mas tudo o que o anime tem é pancadaria infinita, com uma animação que é ou muito parada ou muito movimentada, sem meio termo, com uma montagem bagunçada e confusa que não só não aproveita o potencial dos embates como é indutora de ataques epilépticos, além de visuais sem inspiração alguma, pois não basta desenhar armaduras cheias de luzinhas que, vale dizer, não melhoram em nada as performances dos personagens antes de eles usarem as engenhocas tecnológicas. Também não ajuda em nada todos os personagens menos Mike e o chefão ninja serem fungíveis, um sendo facilmente substituível pelo outro em termos de aparência física, habilidades e capacidade de fazer o espectador revirar os olhos em desespero. Nem mesmo o lado místico é bem utilizado, com os tão mencionados “poderes especiais” de Higan e outros ninjas não sendo mais do que conveniências narrativas que só têm serventia real uma única vez, logo no começo, quando o protagonista morre e ressuscita inexplicavelmente. Ah, claro, há um monte de reviravoltas, todas elas não só telegrafadas em detalhes, como tão pouco interessantes quanto as armaduras brilhantes.
Sendo bonzinho, vale dizer que, até o fim da primeira metade da temporada, tudo é péssimo, beirando o insuportável, por não haver contexto para sustentar a narrativa (ou melhor, o fiapo de narrativa), mas, a partir desse ponto, a coisa melhora substancialmente, com a construção de um módico de estrutura, de desenvolvimento de história e de personagens. Cheguei a ficar esperançoso de que a temporada fosse se encontrar, mas, então, ela começou a novamente ruir sob o peso da incompetência de roteiros inanes baseados somente em visuais supostamente bacanas na medida em que ela caminhava para seu final e, quando o grande embate finalmente chega, ele chega a ser hilário de tão ruim e anticlimático. Foi um banho de água fria.
Com tudo isso (ou seria “com nada disso”?), Ninja Kamui nem passatempo consegue ser, a não ser que a noção de passatempo seja passar raiva durante tempo demais assistindo a algo que tinha enorme – e fácil – potencial para ser diversão descompromissada de qualidade. O sarrafo do que se esperava da combinação de missão de vingança com artes marciais, instrumentos cortantes e espaço livre para ser um festival de corpos cortados em pedacinhos para todo lado já era baixo, mas essa produção aqui conseguiu jogá-lo no chão e mesmo assim não chegou a alcançá-lo. É necessário habilidade especial para ser tão ruim…
Obs: Reparem só que coisa surreal. Em um ano, três animes amplamente disponibilizados sobre samurai/ninja que foram efetivamente produzidos no Japão – Ninja Kamui, Yasuke e Onimusha – foram, em conjunto, fraquíssimos, enquanto um anime sobre samurai produzido na França e nos EUA – Samurai de Olhos Azuis – conseguiu ser uma obra-prima…
Ninja Kamui (Idem – EUA/Japão, de 11 de fevereiro a 05 de maio de 2024)
Direção: Sunghoo Park, Hiroki Itai, Hiro Ohki, Yui Miura, Masataka Akai, Hisatoshi Shimizu, Takayuki Sano
Roteiro: Shigeru Murakoshi, Akira Kindaichi, Ko Yoneyama
Elenco (vozes em inglês): Jeremy Gee, Chaney Moore, Noble Hutchison, Shawn Hamilton, Luci Christian, Luis Galindo, James Marler, Sean Patric Judge, Brandon Hearnberger, Scott Gibbs
Duração: 312 min. (13 episódios)