Home LiteraturaConto Crítica | Nem Mesmo Lenda, de Alan Moore

Crítica | Nem Mesmo Lenda, de Alan Moore

Um mistério sobrenaturalmente cômico.

por Kevin Rick
1,7K views

Em Iluminações, lançado em 2022, temos uma coleção de pequenos contos de Alan Moore, contendo diversas histórias peculiares que o autor britânico escreveu ao longo das décadas. Dentre os universos criados pela mente febril e fantástica de Moore, nos deparamos com Nem Mesmo Lenda (Not Even Legend), sobre um grupo de investigadores sobrenaturais que decide parar de estudar criaturas conhecidas pelos humanos, como fantasmas e vampiros, para focar no descobrimento de monstros desconhecidos. O que eles não sabem, porém, é que uma dessas entidades ocultas está infiltrada na organização.

De início, a narrativa tem um sabor quase satírico ao nos situar da reunião do CISAN – Comitê para a Investigação Surrealista das Alegações dos Normais. Do nome da organização até os diversos jogos de palavras aleatórias com criaturas, trabalhos de investigação sem sentido e dossiês malucos, o autor parece estar tirando sarro dos personagens, como se estivéssemos vendo a reunião de terraplanistas ou de quem acredita em astrologia (que vamos combinar, é o terraplanismo socialmente aceito). Até porque somos gradualmente apresentados aos membros do grupo, com uma narração que busca o ponto de vista de cada um deles, nos introduzindo aos seus pensamentos inseguros, problemas pessoais, ressentimentos bobos e julgamentos mesquinhos, tudo levando a crer que a história quer ridicularizar suas figuras.

Temas como solidão, egoísmo e velhice aparecem aqui e ali, como num líder que não quer parecer careta, uma moça que está no grupo para estudar os crentes no sobrenatural e um ilustrador que se aproveita da organização para promover seu trabalho, mas Moore não extrai nada exatamente dramático aqui, mais representando seus personagens como negacionistas ou oportunistas do que indivíduos vulneráveis. Quando alguns personagens têm pensamentos eróticos, outros divagam durante a palestra da reunião, e alguns se mostram desinteressados pela pauta do encontro, a narrativa realmente enfatiza esse corpo de comédia de escritório mais ácida.

A questão é: não sei se isso é exatamente intencional. Aos poucos conhecemos as criaturas deste universo, o texto ganha contornos de mistério e a história recebe um sabor folclórico, mas até quando a narrativa muda a percepção do leitor de que neste universo monstros realmente existem e há um perigo à espreita, Moore parece manter um tom comicamente irreverente que, mesmo tornando o ocultismo real na história, não deixa a leitura sisuda ou menos engraçada. Vejamos, por exemplo, a criatura que ganha mais protagonismo, chamada Zé Sussurro, que tem esse nome sem saber a razão e que tem como alicerce de sua mitologia o fato de viver para trás no tempo e gostar bastante de sexo, o que dá um artifício peculiar para a forma de se contar a história (mais disso à frente) e principalmente que agrega mais camadas de humor para um monstro efetivamente pervertido.

Além do Zé Sussurro, Moore apresenta outras entidades desconhecidas que habitam o Reino Unido, chamadas de fecha-casacas, jilcos e mormolins, todas com habilidades cômicas e características subversivas, como o fato de uma das criaturas ser preguiçosa e sugar a serotonina dos outros, e outra se assemelhar a uma pilha de roupa suja. É curioso como Moore consegue ter tanta personalidade e criatividade numa história tão curta, com monstrinhos que deixam uma impressão ao ponto de querermos saber mais desse universo, seu folclore absurdo e seu impacto na cultura britânica. O autor até chega a pontuar o cenário da pandemia e o Brexit, que poderiam agregar mais substância para essa possibilidade temática sobre negacionismo, mas que acabam não ganhando desenvolvimento.

Inclusive, Nem Mesmo Lenda acaba pecando por ser justamente um conto, sem a narrativa ter tempo para esticar seus temas e possíveis encaminhamentos da história para realmente entendermos se estamos diante de um pequeno mistério folclórico ou uma sátira subversiva sobre negacionismo e corporações, e quem sabe ambos. No fim, porém, tudo acaba sendo bastante divertido de ler, principalmente pela forma que Moore parece se divertir horrores com o recurso de Zé Sussurro viver para trás no tempo, com a narrativa sendo lida ao contrário, bem no estilo Memento, trazendo um fascínio na escrita inteligente por seu enquadramento temporal e, novamente, na forma humorística que tudo se desenrola pelo fato de que a criatura enxerga quase tudo através de seus relacionamentos que começam no fim e terminam no início. No desfecho da história, Moore até utiliza do artifício para entregar uma reviravolta esperta que deixa um sorriso no rosto do leitor.

Nem Mesmo Lenda (Not Even Legend) — Reino Unido, 2022
Autor: Alan Moore
Publicação original: Illuminations
Editora original: Bloomsbury
Edição lida para esta crítica: Iluminações (Editora Aleph, 2022)
Tradução: Adriano Scandolara
Número de páginas do conto: 19

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais