Monteiro Lobato foi uma das figuras intelectuais mais polêmicas da cultura brasileira dos primeiros anos do século XX. Crítico ferrenho das ideias modernistas expostas na Semana de Arte Moderna, o escritor produziu diversos contos, crônicas e ensaios que, de certa maneira, entravam em contradição com a sua postura antagônica ao que se manifestava culturalmente em nosso território entre as décadas de 1910 e 1920. Antes de publicar o conto Negrinha, uma história que podemos denominar como forte, violenta e aterrorizante, o autor tinha concebido algumas de suas principais produções, tais como Urupês, de 1918, uma coletânea de histórias que deflagravam peculiaridades de regiões que não entraram no centro das discussões políticas e sociais da época, e Cidades Mortas, de 1919, agrupamento de contos que delineavam, em seu contexto histórico, a crise na economia cafeeira. Conhecido mundialmente pelas aventuras do Sítio do Pica-Pau Amarelo, universo da boneca Emília, de Tia Anastácia e Dona Benta, bem como outros personagens icônicos, Monteiro Lobato também escreveu ensaios, críticas literárias, publicou um romance, numa trajetória ativa de produção discutida ainda no contemporâneo, haja vista os desdobramentos de muitas questões abordas em sua tessitura literária.
Situado didaticamente pela historiografia literária num período de produção cultural classificado como Pré-Modernismo, o escritor se encontra ao lado de Augusto dos Anjos, Euclides da Cunha, Graça Aranha, Lima Barreto, dentre outros, numa era conhecida por seu sincretismo literário, junção de manifestações reformuladas do que se produzia entre simbolistas e parnasianos, fase atribulada, de muitas inquietações que antecipavam a agitação cultural que demarcariam as décadas seguintes. Nesta seara discursiva, Monteiro Lobato e as demais figuras de sua geração produziam histórias com linguagem coloquial, numa busca pela simplicidade que promovia uma ruptura com o academicismo, panorama de textos contextualizados numa época de exposição da realidade social, nacionalismo intensificado pelas mudanças políticas do regime republicano ainda relativamente recente, marginalização de personagens, juntamente com mudanças bruscas na sociedade, uma prévia das transformações de um mundo cada vez mais industrializado, globalmente conectado, permeado por fluxos culturais vertiginosos.
Sabemos que estas classificações por períodos são didáticas, mas nem sempre contemplam fenômenos em sua totalidade, por isso, apesar de colocarmos Monteiro Lobato numa vitrine para melhor compreensão histórica de suas contribuições literárias, a escrita do polêmico autor não pode, tampouco deve, ser observada por olhares de fixidez, haja vista a longevidade de sua produção e as peculiaridades de cada história publicada ao longo dos anos da vida de alguém que se manteve posicionado no sistema literário brasileiro até os anos finais da década de 1940. Negrinha, publicado no ano anteriormente mencionado, é um conto que se faz presente no contemporâneo pela atualidade dos tópicos temáticos que envolvem a sua composição violenta e crua sobre as questões raciais que ainda são bastante problemáticas em nosso país, uma nação que infelizmente persiste no chamado “mito da democracia racial”.
Disponível também na seleção de textos de Ítalo Moriconi, intitulada Os 100 Melhores Contos Brasileiros do Século XX, a história em questão foi conferida por meio da edição da Ciranda Cultural, publicada em 2019, diagramada e encapada pela Casa de Ideias, num projeto gráfico interessado na popularização do conteúdo, isto é, na entrega de Negrinha e Outros Contos através de um projeto editorial mais simples e, portanto, financeiramente mais em conta aos interessados na leitura do material. Conciso, mas impactante, o conto é uma representação de duas personagens situadas no mesmo contexto histórico, porém, dissociadas no que concerne aos posicionamentos sociais onde convivem. Negrinha, descrita por adjetivos que a tornam animalizada, era uma garota negra sofrida, atrofiada, magra, chamada dos mais terríveis nomes, apelidada de peste bubônica num determinado período da história, ao contrário de Dona Inácia, uma senhora rica, de mente escravocrata, branca e rica, alguém que nas ideias do padre que a visitava, emprestava a Deus ao ajudar os pobres e demais necessitados.
A personagem-título, Negrinha, era tratada com descaso, como uma celeuma na vida da senhora dona do lar. Após a morte de sua mãe, uma “criada” que se foi e deixou a “encomenda” para trás, Dona Inácia resolveu tomar conta da jovem, maltratando-a cotidianamente como uma forma de liberar os demônios de sua irritabilidade. O auge na descrição do autor é o dia que a menina chama alguém de peste, apelido que aqui soa como xingamento, colocando um ovo cozido ainda fervendo na boca da personagem, como uma estratégia punitiva que tinha, por meio da coerção, o interesse de deixar a criança posicionada em seu lugar de oprimida constantemente. As coisas mudam, por sua vez, com a visita de duas crianças da família, loiras e angelicais, figuras que parecem trazer iluminação para a vida da senhora que num momento breve de bondade, deixa Negrinha brincar no jardim com as visitantes. Com narração que delineia o olhar de assombro e encantamento da garota diante de um comportamento tão singular por parte de Dona Inácia, acompanhamos a sua alegria momentânea, seguida de sua morte como uma moribunda, numa descrição que beira ao macabro, tamanho descaso e violência com o ser humano retratado.
Acusado de racismo em suas obras, Monteiro Lobato foi tópico temático nas discussões atuais sobre cultura do cancelamento por aqui, com posições diversas sobre a necessidade de manutenção ou apagamento de seu histórico literário nos livros didáticos brasileiros. A questão é polêmica e rende muitos debates. Alguns acreditam na importância da edição de seus textos, com notas explicativas, outros, reforçam que não se deve mexer no material e, por meio dos educadores orientadores, refletir sobre a mentalidade da época do autor, sem aderir ao cancelamento que pode, nalguns casos, ser nocivo para o debate diante de algum fenômeno social. É sabido que o autor defendia algumas posições bastantes problemáticas, tais como o estabelecimento de algo semelhante ao movimento racista Klu Klux Klan no Brasil, no entanto, Lobato é fruto da mentalidade de uma época, por isso, deve ser lido e pensado como tal, sem o apagamento de suas marcas de escrita. Em Negrinha, não posso afirmar veementemente o seu interesse em ser deliberadamente arauto do racismo, haja vista a estratégia de composição do conto que parece denunciar a situação da personagem, estrutura que, por sua vez, parece se deliciar com cada adjetivação e sofrimento imposto para a garota do título. Para refletir.
Negrinha (Brasil, 1920)
Autor: Monteiro Lobato
Editora: Ciranda Cultural
Páginas: 7.