Há uma característica muito evidente na montagem deste filme que é uma determinada essencialidade do seu primeiro ato. Claude Chabrol resume ao máximo a sua trama nos primeiros minutos, introduzindo um núcleo dramático conciso, veloz, com uma câmera objetiva e distanciada e apresentação de personagem completa. Encapsula, portanto, em pouco mais de dez minutos, tudo aquilo que vai trabalhar no restante do filme. Não é que é sugestivo a presença da femme fatale trajada de vermelho e de seu parceiro aplicando golpes em senhores endinheirados: é mais do que sugestivo, é proposital. O batom vermelho, a sedução e a vigarice que caracterizam esses primeiros minutos não dizem menos do que tudo. Enfim depois de um ato marcado, Negócios à Parte inicia do começo mais basilar. O que ele faz é o seguinte: nos apresenta a sua ideia, nos vende propriamente, e decidimos se compramos ou não. Pelo seu poder de atração fílmica, parece inevitável que continuemos após saber da extrema simpatia conduzida pelos personagens na construção da ação do filme. Não tem nada de mais, mas parece viciante o que se revela.
Se tem alguém que Chabrol dirigiu muito durante sua Era de Ouro esta pessoa é Isabelle Huppert. Além deste, ele a guiou em seu Madame Bovary, no qual ela fazia simplesmente o papel da Emma. Bom, o que posso dizer de uma atriz que, na quase totalidade de suas interpretações, entrega o fino da atuação? A elegância do cinema classudo de Claude Chabrol encontra, quase como num match perfeito, a polidez de uma Huppert que mostra suas mil facetas enquanto atriz. O cinema de Chabrol exige uma determinada classe de seus atores a qual Huppert consegue suprir de maneira excelente. Aqui, em Rien Ne Va Plus, ela está multifacetada: caminha do cômico ao sedutor, da impassividade ao romantismo, da vilã à vítima com bastante facilidade e sobretudo naturalidade. Em alguns momentos de rigidez, ela já me parecia pronta a ser protagonista de um dos maiores filmes do cinema francês moderno: A Professora de Piano.
Bom, veja que, a respeito do estilo adotado na película, embebe-se de influências de um noir clássico. Pode até ter algo de hitchcockiano em sua intriga, mas a primeira referência, e a mais evidente, é a de Almas Perversas, de Fritz Lang. O enredo é muito similar: a figura feminina e suas relações perversas com os homens, e um que está por trás de todo o golpe, fazem parte do universo compartilhado entre Lang e Chabrol. Posso estar enganado, mas os elementos semelhantes são tantos que não pude me furtar a uma comparação.
O enredo é cativante porque ele é complexo e é complexo porque é dinâmico, e tudo que é dinâmico prende a nossa atenção. O cineasta faz o seu dever de casa bem despretensiosamente, é verdade. As peripécias e os reconhecimentos não são arrebatadores mas são antes cômicos, com um toque de humor contido mas essencial para a proposta. Não é complexo porque é “cabeçudo”, é complexo porque tem reviravoltas, isto é, porque se aventura em elementos ficcionais próprios ao gênero noir, confundindo o espectador e coisas assim.
O que não significa que o texto-base seja também enredado, complexo; na verdade, é tudo muito simples: se prende na seguinte estrutura: mimese de Bonnie e Clyde (Arthur Penn, 1967) em que o casal sai por aí aplicando golpes milionários e uma hora são pegos ao tentarem infaustamente serem vigaristas com um ricaço que é também bandido, são pegos e soltos sem muito empenho na criação de um suspense genuíno. Os nós são resolvidos sem dificuldades, embora os diálogos sejam interessantes. Até por isso mesmo, pela simplicidade do roteiro, o tom adotado pelo filme atravessa sempre um cômico gostoso de assistir. É esta característica de trivialidade e lugar-comum que faz Jean-Luc Godard chamar Chabrol de “bobo” ou mesmo falar que seus filmes são mais esvaziados. Não tem pretensão alguma, é mesmo despretensioso ao máximo, por isso finaliza naquele ritmo meio “tanto faz”. Quero dizer, as aventuras burguesas propostas pelo cineasta não têm nada demais. O desenlace é tão negativamente inesperado que acabamos por achar graça e leveza.
Por isso que há um paradoxo estrutural neste filme: ao mesmo tempo em que ele se enquadra num enredo complexo, o seu texto é simples. O primeiro diz respeito ao número de reviravoltas na ação dramática; o segundo, à caracterização da complexidade dos personagens, de suas posturas, da mensagem fílmica, entre outros. Ter o enredo simples ou complexo não é propriamente uma qualidade que faz o filme ser bom ou ruim, mas uma estrutura já dada e encontrada em basicamente todos os filmes derivados do gênero policial: todos eles são de feição complexa; os simples, por sua vez, são mais lineares e optam sempre por uma contenção nos elementos da peripécia e reconhecimento. Pelo contrário, a complexidade do texto fílmico indica a sua qualidade. Negócios à Parte tem um enredo complexo pelas ações da intriga mas uma inevitável simplicidade textual, por isso mesmo não se furta a utilizar de um gênero menor – o cômico – como elemento primordial da trama. Repito: não há nada de especial aqui, mas diverte.
A semi-paródia-noir de Chabrol requer, por parte do público, uma sorte de empatia pelos anti-heróis da trama, isto é, a dupla de vigaristas principais. Torcemos para que eles consigam finalizar seus golpes e que se safem dos problemas encontrados, e por isso a película trabalha uma baita simpatia nas figuras dos protagonistas, nos levando à fascinação e à uma atração puramente desinteressada. Pensando bem, acho que este filme é muito bom não pelo que propõe, mas pelo carisma daqueles que estão à frente das câmeras. Pela Huppert, pelo incrível Michel Serrault e François Cluzet, vale a pena uma assistida como quem não quer nada.
Negócios à Parte (Rien Ne Va Plus, França, 1997)
Direção: Claude Chabrol
Roteiro: Claude Chabrol
Elenco: Isabelle Huppert, Michel Serrault, François Cluzet, Jean-François Balmer, Jackie Berroyer, Jean Benguigui, Yves Verhoeven
Duração: 106 min.